Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, alertou Camões. Todo o mundo é feito de mudanças. Sem dúvida, em situações extremas, as mudanças são mais rápidas e marcantes, exatamente o que está ocorrendo nesse momento de pandemia mundial. O país está enfrentando sua maior crise sanitária dos últimos 100 anos e, após quase seis meses do reconhecimento do estado de emergência em saúde pública, é possível apresentar um retrato provisório do que se constatou quanto às mudanças no presente e as repercussões futuras.
Primeiro, é essencial que se reconheça a capacidade de organização de demonstrada pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Depois de muitos anos apresentando a redução de leitos hospitalares, foi necessário investir na criação de cerca de 22,8 mil novos leitos de internação para que fossem atendidos pacientes confirmados ou com suspeita de infecção por Covid-19. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM) é a primeira vez, em pelo menos dez anos, que esse tipo de infraestrutura volta a aumentar no País. É fato que muitos desses leitos são provisórios, mas houve uma demonstração de agilidade inconteste.
Há o reconhecimento, inclusive pelo próprio governo, de que a gestão de recursos, o planejamento estratégico, a necessidade de ampliação do uso da tecnologia no Sistema Único de Saúde fará toda a diferença no momento pós pandemia. A sociedade não pode permitir retrocessos quanto a avanços estruturais: a adoção de uma política de atenção primária, como forma de ampliar o acesso à saúde e evitar doenças é essencial. Cidadãos saudáveis adoecem menos.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) precisaram ser ágeis a fim de editar resoluções e recomendações para que a assistência à saúde prosseguisse. Por parte da Anvisa, foi necessário se posicionar sobre a prescrição eletrônica, prazo de validade de prescrições de medicamentos de uso contínuo, mudanças no e-commerce de medicamentos (inclusive do grupo daqueles de controle especial), orientações sobre medidas preventivas para que não houvesse o aumento de contaminados pelo vírus. Também foi colocada para a autarquia a difícil decisão sobre pesquisas que envolvem vacinas para o vírus do uso de medicamentos como a cloroquina e a hidroxicloroquina. A ANS, por seu turno, falou sobre cobertura de exames para detecção de Covid-19, suspensão de cirurgias eletivas, atendimentos por telessaúde e telemedicina. Todos os órgãos foram pegos de surpresa e buscaram tomar decisões acertadas em prol da população.
Os profissionais da saúde experimentaram diversas mudanças em seu cotidiano. Aqueles que são chamados para a "linha de frente" de hospitais públicos e privados, ao lado dos infectologistas, passaram por batalhas nos prontos-socorros e Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) para salvar vidas. Já outros médicos estão tendo que se adequar rapidamente ao uso da tecnologia para sobreviver e atender seus pacientes, através da telemedicina.
A regulamentação da telemedicina no Brasil foi acelerada em razão da emergência provocada pela pandemia do Covid-19, reconhecida pela Portaria 188/20 e pela Lei 13.979/20. O isolamento social, necessário para controlar a rápida disseminação do vírus trouxe a urgência de medidas rápidas a serem adotadas pelas autoridades sanitárias, uma delas foi a de permitir a teleconsulta, uma das modalidades da telemedicina. A mais complexa do ponto de vista ético e legal, considerando que extrai da relação médico e paciente um dos seus elementos centrais: o exame clínico presencial.
O uso da telemedicina, apesar de não ser novo no Brasil, passou a ser adotado como a única saída em tempos de crise para profissionais da saúde e pacientes. Essa nova relação também realçou a necessidade de novos protocolos para observância de princípios éticos, bem como para evitar a judicialização com alegação de erro médico (especialmente de diagnóstico) no atendimento a distância.
Hoje, a prática da telemedicina está embasada pela Lei 13.989/2020. A indicação para que a sociedade adotasse o isolamento social como comportamento necessário para evitar a contaminação, por si já seria autorizadora para a prática da teleconsulta e também por se considerar que não havia vedação legal para o atendimento pelo médico utilizando a tecnologia como ferramenta.
Entretanto, para que o médico e paciente tenham segurança, é necessário observar as limitações de uma consulta a distância intermediada por uma tecnologia e os cuidados precisam ser redobrados com relação à segurança de dados e princípios éticos representativos de direitos constitucionais, como a privacidade e a dignidade humana, contemplados de certa forma pela Portaria 467/2020 do Ministério da Saúde. Diversas organizações já estão aplicando o modelo para pacientes que não podem se deslocar ao serviço de saúde e que precisam manter seu acompanhamento médico, com objetivo de controlar os fatores de risco e continuar o tratamento. Números apresentados em recente reportagem da Revista Exame apontam para 1,7 milhões consultas por telemedicina realizadas desde fevereiro. Muitas startups de healtchteach cresceram vertiginosamente e foram investidas por fundos internacionais desde fevereiro.
Mas, o Brasil apresenta ainda gargalos que precisam ser ultrapassados para que seja possível a ampliação do acesso à tecnologia e uso da telemedicina para atendimento em todo território nacional. Um deles está relacionado à existência de banda larga em diversas regiões e do oferecimento de uma internet de qualidade à população. Outra questão que precisa ser discutida está na remuneração dos prestadores de serviço, em especial os médicos, os quais temem ter honorários aviltados com a escalabilidade da prestação de serviços através da telemedicina.
Outro ponto de atenção está no aumento do tráfego de dados pela internet e a necessidade de adoção de práticas seguras de proteção desses dados, considerando que as informações de saúde são classificadas como sensíveis pela lei e merecerem tratamento diferenciado pela Lei Geral de proteção de Dados (13.709/2018).
Empresas e profissionais envolvidos na prestação de serviços
de Telemedicina precisam estar atentos à urgência de se adaptarem à legislação
e demonstrarem à sociedade que adotaram uma política de privacidade de dados
sólida e um programa de governança focado na segurança da informação, pelo
princípio da transparência, tão necessário para o chamado tratamento dos dados
pessoais.
Ainda na esteira de transformações constatadas na seara da prestação de serviços em saúde, a pandemia também fez crescer a exposição de médicos em redes sociais, proliferaram lives, posts com os mais variados enfoques, alguns distantes das diretrizes éticas estabelecidas pelo Conselho Federal de Medicina. Um campo perigoso, pois se faz necessário informar sobre determinado tema, sem sensacionalismo, autopromoção e sem promover a concorrência desleal entre os colegas, conforme disposto na Resolução CFM 1.974/2011. No entanto, quando há uma corrida por número de seguidores e likes, achar o limite para essa exposição não é tarefa fácil e várias novas Sindicâncias estão sendo instauradas pelo Conselhos Regionais de Medicina.
No Brasil, na seara da Saúde, resta acreditar que será possível ao SUS melhorar a eficiência e reduzir desperdícios. Na saúde suplementar, a oferta da telemedicina representará também um novo momento, quem sabe de revisão inclusive na forma de remuneração e aprimorando a assistência ao paciente. Por fim, deverá haver no setor da saúde, uma transformação cultural: o estímulo ao autocuidado e o reconhecimento da importância dos cuidados com a atenção primária. Tudo isso envolve educação tanto dos novos médicos, como dos atuais através de protocolos e guidelines elaborados pelas sociedades de especialidades e, claro, será necessário educar a sociedade em busca do conceito de assistência não centrado na doença. Que venha essa nova era!
Sandra Franco - consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, doutoranda em Saúde Pública, MBA/FGV em Gestão de Serviços em Saúde, fundadora e ex-presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São José dos Campos (SP) entre 2013 e 2018, especialista em Telemedicina e Proteção de Dados e diretora jurídica da ABCIS.