Pesquisadores de várias instituições
brasileiras e estrangeiras analisaram resultados de exames laboratoriais de
quase 179 mil pessoas testadas para COVID-19 no Brasil. Dados foram obtidos no
COVID-19 Data Sharing/BR, repositório de acesso aberto criado por iniciativa da
FAPESP (imagem: Gerd Altmann/Pixabay)
Após analisar resultados de exames
laboratoriais de quase 179 mil pessoas testadas para COVID-19 no Brasil – 33,2
mil delas com diagnóstico confirmado – um grupo de pesquisadores identificou
diferentes perfis clínicos da doença que são influenciados pelo sexo e pela
idade do paciente, bem como pela gravidade do quadro.
Os resultados do estudo, apoiado pela
FAPESP, foram descritos em artigo disponível
na plataforma medRxiv, ainda sem revisão por
pares. Segundo os autores, os achados podem servir de referência para os
profissionais de saúde que atuam na linha de frente do combate à pandemia.
“O vírus SARS-CoV-2 pode desencadear
um amplo espectro de manifestações clínicas, variando de doença assintomática
ou leve a doença grave e morte. Os parâmetros laboratoriais também variam muito
de acordo com a idade e o sexo do paciente e, muitas vezes, os médicos têm
dificuldade para interpretar os resultados dos exames e identificar uma
alteração significativa. Esperamos que este trabalho possa ajudar nesse
processo de avaliação”, diz à Agência FAPESP Helder Nakaya,
professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo
(FCF-USP).
Por
métodos de bioinformática, o grupo coordenado por Nakaya analisou mais de 200
parâmetros laboratoriais dos milhares de pacientes da amostra, entre eles
contagem completa de células sanguíneas e dosagem de eletrólitos, metabólitos,
gases no sangue arterial, enzimas hepáticas, hormônios e biomarcadores de
inflamação. Tais exames fazem parte da rotina de investigação clínica de pacientes
com suspeita de COVID-19 e outras doenças infecciosas.
Os dados usados na pesquisa foram
obtidos no COVID-19 Data Sharing/BR, um
repositório de acesso aberto criado pela FAPESP e pela USP para abrigar,
inicialmente, informações de pacientes que fizeram teste para COVID-19 nos
laboratórios do Grupo Fleury, em todo o país, ou nos hospitais Israelita Albert
Einstein e Sírio-Libanês, ambos na cidade de São Paulo (leia mais em agencia.fapesp.br/33526/ e
em agencia.fapesp.br/33427/).
“Trata-se
da maior coorte de pacientes com COVID-19 cujos dados laboratoriais foram
sistematicamente analisados até o momento. Trabalhos anteriores já haviam
investigado a relação da doença com muitos desses parâmetros – principalmente
as citocinas [moléculas que desencadeiam o processo inflamatório] e a proteína
C-reativa [principal biomarcador de inflamação sistêmica]. Mas, até então,
havia apenas artigos que relatavam o estudo de alguns poucos parâmetros em
muitos indivíduos ou de muitos parâmetros em poucos indivíduos”, comenta
Nakaya.
De acordo
com o pesquisador, o primeiro passo foi separar os diferentes grupos de
pacientes a serem analisados considerando, principalmente, a idade, o sexo e o
resultado do teste diagnóstico. Em seguida, foi necessário filtrar as
informações em comum nos diversos centros médicos que alimentam o repositório –
eliminando redundâncias e harmonizando dados discrepantes (nomenclaturas
diferentes para um mesmo exame, por exemplo). Após o processamento das
informações em um só banco de dados harmonizados, uma série de análises foi
feita para traçar o perfil laboratorial da COVID-19 nos diferentes grupos de
pacientes e compará-lo com os controles (indivíduos submetidos aos mesmos
exames, mas sem diagnóstico confirmado).
Para a
maioria dos indivíduos da amostra, as informações sobre o desfecho do caso não
estavam disponíveis, ou seja, não era possível saber se o paciente precisou ser
internado, se morreu ou se teve somente sintomas leves e se recuperou. Porém,
parte dos dados fornecidos pelo Hospital Sírio-Libanês
foi identificada como sendo de pacientes internados em Unidade de
Terapia Intensiva (UTI). Isso tornou possível investigar o perfil laboratorial
dos doentes que necessitaram de cuidados intensivos, como ventilação mecânica,
e compará-lo com o de pacientes não internados.
Problema complexo
Inicialmente
considerada uma infecção de vias respiratórias, a COVID-19 tem se revelado uma
doença sistêmica, que pode estar associada a distúrbios gastrointestinais,
hepáticos, cardiovasculares e neurológicos, podendo evoluir para síndrome do
desconforto respiratório agudo, falência de múltiplos órgãos e morte.
“Tais
manifestações extrapulmonares estão associadas a alterações nos níveis
circulantes de diversos parâmetros bioquímicos, como bilirrubina, ureia,
creatinina, mioglobina e fatores de coagulação. E ainda pouco se sabe sobre a
influência do sexo e da idade do paciente no padrão desses parâmetros”, explica
o médico Bruno Andrade, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em
Salvador, na Bahia, e coautor do artigo.
Segundo
Andrade, estudos observacionais – baseados na análise de internações e óbitos –
indicam que indivíduos idosos e do sexo masculino são os que apresentam maior
risco de evoluir para quadros graves. “Contudo, essa associação ainda carece de
confirmação biológica e o mecanismo fisiopatológico ainda não foi totalmente
esclarecido", diz.
Nas
análises descritas no artigo, a infecção pelo SARS-CoV-2 em indivíduos de 13 a
60 anos se mostrou associada a alteração em diversos parâmetros laboratoriais
de maneira muito mais frequente em homens do que em mulheres. Em pessoas com
mais de 60 anos, as alterações laboratoriais parecem ter afetado igualmente
homens e mulheres.
Indicadores
usados pelos médicos para avaliar a presença de inflamação sistêmica, como a
proteína C-reativa (PCR) e a ferritina, mostraram um padrão de alteração
importante na presença de COVID-19, especialmente em homens idosos (acima dos
60 anos). Esses resultados sugerem que o alto índice de complicações e
mortalidade documentado nessa subpopulação de pacientes em outros estudos pode
ter associação direta com a inflamação sistêmica desregulada.
Alteração
em testes de função hepática (AST, ALT, gama-GT) foi comumente observada em
vários grupos etários, exceto em mulheres jovens. Na avaliação dos autores,
esses resultados indicam que disfunção hepática é um fenômeno corriqueiro no
contexto da COVID-19.
“Essa
observação é importante, pois o fígado é um órgão central e coordena a produção
de uma série de proteínas e outras moléculas que regulam processos como
inflamação e coagulação. Alterações hepáticas podem ser um fator determinante
para o descontrole de inflamação sistêmica associada a desfechos clínicos mais
desfavoráveis”, explica Andrade.
Ao avaliar
a contagem dos diversos tipos de leucócitos no sangue, os pesquisadores
observaram que concentrações baixas de basófilos e de eosinófilos (células
importantes para a imunidade antiviral) foram mais frequentes em idosos com
COVID-19, independentemente do sexo. Os homens com diagnóstico confirmado da
doença apresentaram as maiores concentrações de neutrófilos – que tendiam a
aumentar ainda mais com a idade. De acordo com Andrade, valores altos na
contagem de neutrófilos são um indicativo de inflamação sistêmica aguda.
Por fim,
nos pacientes internados em UTI, o grupo notou alterações importantes em exames
que avaliam o sistema de coagulação sanguínea (como d-dímero), contagem mais
elevada de neutrófilos e maiores concentrações de marcadores de inflamação
sistêmica (como a proteína C-reativa) e de dano celular e tecidual (como o
lactato desidrogenase).
“Esses
resultados sugerem uma clara associação entre a gravidade da doença e a
ativação descontrolada de processos inflamatórios que possivelmente
desencadeiam coagulação. O gatilho inflamatório da atividade de coagulação é
uma hipótese relevante, pois implica que o controle terapêutico pode ser
otimizado por meio de terapia anti-inflamatória. Porém, ainda são necessários
estudos futuros desenhados para testar diretamente essa ideia”, afirma o
médico.
Ciência aberta
A pesquisa coordenada por Nakaya
contou com a participação de pesquisadores da USP, da Fiocruz e da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp) e recebeu financiamento da FAPESP por meio de
diversos projetos (2018/14933-2, 2018/21934-5, 2017/27131-9, 2013/08216-2, 2019/27139-5 e 2019/13880-5).
“Trata-se
do primeiro artigo que analisa dados do COVID-19 Data Sharing/BR. Submetemos
para publicação cerca de um mês após o repositório entrar em funcionamento,
mostrando ser possível usar rapidamente um grande volume de dados
compartilhados por vários centros”, afirma Nakaya.
O banco
público disponibiliza três categorias de informação: dados demográficos
(gênero, ano de nascimento e região de residência), resultados de exames
clínicos e/ou laboratoriais e, quando disponíveis, informações sobre a
movimentação do paciente (internação, por exemplo) e desfecho do caso
(recuperação ou óbito).
De acordo com Fátima Nunes,
professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP) e diretora do
Centro de Tecnologia de Informação de São Paulo, quase 5 mil visitas e mais de
2 mil downloads já foram registrados nos três conjuntos
de dados do repositório desde o lançamento, em 1o de julho. Em uma segunda
etapa, o COVID-19 Data Sharing/BR abrigará também dados de imagens, como
radiografias e tomografias.
“É um
repositório poderoso, de grande valia para pesquisas sobre a doença. Desconheço
iniciativa similar no Brasil”, comenta Andrade.
O artigo In-depth Analysis of Laboratory Parameters Reveals the Interplay
Between Sex, Age and Systemic Inflammation in Individuals with COVID-19 pode
ser lido em www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.08.07.20170043v2#disqus_thread.
Karina Toledo
Agência
FAPESP
https://agencia.fapesp.br/estudo-mostra-a-influencia-de-idade-e-sexo-no-perfil-clinico-da-covid-19/33927/