A vida, muitas vezes, nos impõe algumas pausas
compulsórias para reflexão. Vivendo um desses momentos, fui transportada para
um domingo qualquer, lá atrás, na minha infância. É impressionante como algumas
lembranças são tão intensas a ponto de trazerem consigo todos os aromas e as
sensações do momento revisitado. Na cozinha espaçosa do sobrado antigo onde
vivia, vi minha mãe às voltas com o almoço enquanto ouvia Roberto Carlos. O som
da melodia fez eco em meu coração: “Quando eu era criança, podia chorar nos
seus braços e ouvir tanta coisa bonita na minha aflição [...][1]”.
Na sala, eu, minha irmã e Andréa – nossa irmã de
alma – assistíamos a algum filme alugado na locadora do bairro, enquanto
esperávamos papai chegar com o jornal, que, àquela época, contava com uma
edição especial aos domingos. Ali, naquele lar simples, lições valiosas, que eu
faria uso por toda a vida, eram cultivadas diariamente. Ainda me lembro da
prece que minha mãe fazia ao terminar de preparar a comida, pedindo a Deus que
enviasse alguém necessitado à nossa porta, para que ela pudesse lhe oferecer
uma boa refeição. E não é que sempre funcionava? Aí era aquela correria para
colocar a comida em potes; a sobremesa e o suco, preparado por meu pai, também
não podiam faltar. E, assim, minha mãe agradecia a oportunidade de ajudar. A fé
que ela tem é uma de suas qualidades mais admiráveis, além da proteção, do
cuidado, da disponibilidade para sempre estender a mão a quem necessita. Certa
vez, quando eu nem era nascida, ela salvou uma mulher e o filho, ainda um bebê,
de um incêndio.
Naquela casa havia amor e livros. Sim, livros, que
meus pais compravam em Kombis ambulantes no centro de São Paulo. Eram títulos
diversos, alguns até mesmo desconhecidos por eles, que não tinham instrução,
mas sabiam que livros eram (e são) capazes de transformar pessoas, construir
narrativas de vida e promover mudanças em toda a sociedade. Cresci assim,
imersa em histórias, em feiras literárias, passando as tardes em bibliotecas e
ganhando livros como presentes de aniversário, de Natal e de Dia das Crianças.
“A infância é o chão sobre o qual caminharemos o
resto dos nossos dias”, como diz Lya Luft em Perdas & Ganhos. Ainda mergulhada
naquele domingo da minha infância, querendo ficar ali, protegida de tudo,
lembrei-me do meu livro predileto, que tantas vezes li: O
meu
pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos. Publicada em
1968, a obra infantojuvenil narra as aventuras de Zezé com o seu pé de
laranja-lima, que ganha vida através da imaginação fértil do menino, e aborda
também questões mais profundas sobre uma sociedade adoecida, como desigualdade,
insegurança alimentar, desemprego e trabalho infantil.
A obra também traz a amizade entre Zezé e o
Portuga, um velho rico e solitário, que ajuda o menino a entender o mundo e a
lidar com suas dificuldades pessoais. Não é tudo o que muitas vezes precisamos?
De alguém ou algo que nos mostre a vida sob outras perspectivas e nos guie na
noite escura dos nossos medos?
Pensei em mudar a história muitas vezes, pois não suportava a dor de ler mais uma vez que o Portuga havia morrido, deixando Zezé ali, com um imenso vazio no peito. A tragédia e as tristezas pelas quais ele passou na infância, contudo, não subtraíram a esperança do menino, que, precocemente, entende que a alegria e a tristeza fazem parte da vida e que ambas são professoras. Zezé seguiu firme, com ternura — um ponto alto e presente em toda a narrativa –, e a vida o premiou nesse caminho com a flor branca de Minguinho, seu pé de laranja-lima.
Tânia Lins - formada em Administração de Empresas e pós-graduada em Língua Portuguesa e Comunicação Empresarial e Institucional. Atua há quinze anos na área editorial, com experiência profissional e acadêmica voltada à edição, preparação e revisão de obras, gerenciamento de produção editorial, leitura crítica e coaching literária. Atualmente é coordenadora editorial na Editora Vida & Consciência.
[1] Música Lady Laura, compositores Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1976.
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