Processo aguarda
posição do Ministério Público Federal para que ministros definam se idosos com
mais de 70 anos são obrigados a se casarem em regime de separação total de bens
Está nas mãos da Procuradoria-Geral da República
(PGR), em Brasília, o processo que discute se é constitucional a norma que
obriga pessoas que tenham mais de 70 anos a se casarem em regimento de
separação total de bens. A regra foi instituída em 2010 para prevenir o que se
convencionou chamar de "golpe do baú" -- expressão pejorativa, de
cunho machista, usada para definir quando uma mulher se casa com um homem mais
velho com o intuito de ficar com sua herança.
A PGR é a terceira instância do Ministério Público
Federal onde atuam os subprocuradores-gerais da República perante os tribunais
superiores e o Supremo Tribunal Federal. O processo
em questão está no STF, que, já em setembro do ano passado, reconheceu que o
tema trata de questão constitucional, e por isso mereceria ser analisado pela
Corte. Desde maio deste ano, espera-se que a PGR dê sua orientação sobre o tema
para que então os 11 ministros julguem o caso.
O caso que chegou ao STF e originou a discussão
ocorreu na cidade de Bauru, no interior de São Paulo. Um casal composto por um
homem e uma mulher mantiveram uma união estável de 2002 a 2014, ano em que ele
morreu. A primeira instância reconheceu a mulher como herdeira, mas ela acabou
perdendo o processo quando os filhos do marido recorreram ao Tribunal de
Justiça de São Paulo. Lá aplicou-se o regime de separação de bens, uma vez que
ele já tinha mais de 70 anos quando a relação foi selada. Na busca por Justiça,
os autos foram parar no Superior Tribunal de Justiça e, agora, no STF.
Segundo a advogada Marilia Golfieri Angella,
sócia-fundadora do Marília Golfieri Angella – Advocacia Familiar e Social,
especialista em Direito de Família, Gênero e Infância e Juventude, mestranda em
Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP e professora colaboradora do
FGV Law, a discussão extrapola a questão da proteção do patrimônio. Para ela,
esse debate precisa ser feito do ponto vista da autonomia da pessoa idosa.
O próprio Estatuto da Pessoa Idosa foi alterado em
julho de 2022 para a substituição as palavras “idoso” ou “idosos” por “pessoa
idosa” ou “pessoas idosas”, respectivamente. “Os recentes debates a respeito
deste caso em julgamento no STF caminham no mesmo sentido daquelas destinadas
ao estudo da dignidade humana da pessoa idosa e da necessidade de garantia de
maior respeito e autonomia dessa parcela da população”, afirma.
“A discussão sobre a alteração do termo ‘idoso’ foi
iniciada a partir do Projeto de Lei 72/2018 tendo em vista a necessidade de
adequação da terminologia em respeito à luta das pessoas idosas, assim como
ocorre com as pessoas com deficiência, que também vêm encontrando respaldo na
legislação para serem mais valorizadas a partir de um tratamento adequado, sem
preconceitos e rotulações, promovendo inclusão social e criação de políticas
públicas protetivas, também destinadas a uma maior participação comunitária”,
comenta Marilia Golfieri Angella.
De acordo com a especialista no tema, quando a lei
presume, de forma indistinta, a absoluta incapacidade das pessoas maiores de 70
para decidir sobre o regime patrimonial aplicável às suas uniões familiares,
sejam elas através do casamento formal ou da mera união estável, “a regra
afronta diretamente a autonomia destas pessoas, ocorrendo um esvaziamento da
capacidade natural de decidir sobre os atos mais banais da vida civil
supostamente em prol da proteção patrimonial”.
“Em verdade, a norma que buscava promover a proteção
patrimonial da pessoa, quiçá de uma possível herança, age em desfavor da
autonomia e do respeito da vontade da pessoa idosa, ainda mais atualmente, com
o avanço dos pactos sociais e da medicina, que promovem aumento da expectativa
de vida e fazendo com que pessoas com setenta anos ainda estejam completamente
ativas e plenamente conscientes de seus atos”, finaliza.
Como ocorre no caso posto em julgamento pelo STF, o
casal de idosos viveu por mais de 10 anos junto e, a partir do momento da morte
do marido, seus filhos começaram a discussão contra a companheira com
finalidade puramente patrimonial. “O que acaba acontecendo é justamente como no
caso do STF: a companheira cuida no final da vida, muitas vezes assumindo
importante função de cuidado e, após a morte, os filhos deixam-na sem nada”,
completa.
Sobre a necessidade de se observar o caso também
por um viés de gênero, Marília explica que “há desrespeito não só ao que o pai
provavelmente desejaria em vida, que seria a proteção de sua companheira, mas possível
desrespeito à dignidade desta mulher, que sofre o luto e enfrenta uma nova
disputa contra a família. Há discriminação etária, ante o desrespeito da
vontade do pai, e de gênero, a qual precisa ser analisada adequadamente pela
sociedade, pelo legislativo e pelo Poder Judiciário a partir da ótica do novo Protocolo
para Julgamento com Perspectiva de Gênero, lançado pelo CNJ”.
Marilia Golfieri Angella - sócia-fundadora do Marília Golfieri Angella –
Advocacia Familiar e Social, especialista em Direito de Família, Gênero e
Infância e Juventude.
Nenhum comentário:
Postar um comentário