As pessoas investem suas emoções em coisas, em valores, em outras pessoas. Ocorrem, pois, dores de emoção quando perdemos o aquilo sobre o que investimos, seja porque deixou de existir, seja porque não conseguimos mantê-lo. Perdas e abandonos doem. Freud chama a isso de luto. O luto é sempre narcísico, ou seja, é dolorido porque dói no amor que se tem por si próprio. Sim, cada um de nós se ama a si mesmo acima de tudo, e não se conforma em perder ou ser abandonado. Nisso concorremos com as próprias divindades, que querem que todos as amem acima de todas as coisas.
Em psicanálise, narcisismo
é o investimento exagerado da libido no próprio ego. Traduzindo, narcisismo é o
eu sou o bom, o bonito e o gostoso, e só por isso me amo e, lógico, todos devem
me amar. O narcisista enxerga pouco outras pessoas, não considera o derredor;
gosta de se ver, faz-se referência de tudo; é o espelho do mundo. Acaba
confundido com o mal-amado, pois, ávido por atenção, parece que tem pouca. Não
é o caso, ele tem a quota normal que todos recebemos, mas, havendo-se acima da
conta geral, nunca o que lhe é dado é o que ele precisa, ou o que entende que
lhe é de direito.
Isto descreve a aparência
evidente do narcisista. É um tipo que já se conhece bem. Mas há outros aspectos
que suponho não muito percebidos. O que traz as mais daninhas consequências é a
sua resistência a qualquer mudança em si, em seu pensamento, em seu relacionamento
com o mundo. Ora, alguém que se considera um pacotinho bem feito, com tudo bem
direitinho no seu lugarzinho, não admite mexer em nada. A não ser, claro, que
ele decida acrescentar-se mais beleza (plástica, academia, roupa etc). Ele está
bem, suas ideias sobre as coisas estão bem, seus planos para o futuro são
irretocáveis.
Mas, vamos por partes: se
tudo estivesse tão bem, inexistiria a compulsão narcísica. Se o narcísico se
crê uma obra de arte, jamais estará satisfeito, porque nunca se achará
suficientemente apreciado. No relacionamento amoroso, por exemplo, a admiração
do seu par não será bastante. Espera homenagens além das possibilidades do um
só que o ama; melhor se a turma o reconhecer, se o mundo o desejar. Caso isso
não aconteça, o sujeito dá um jeito de exibir-se. Exibindo-se e não obtendo
amor, torna-se arrogante: as pessoas seriam tolas; ou fica depressivo: não é
reconhecido como deveria.
Suas ideias são as da
salvação: diante das discordâncias, se o narcísico está em boa posição, dirige
um olhar superior ao dissidente: age piedosamente com o ignorante que dele
discorda, esse ignorante que jamais o alcançará. Se sua posição não está
vantajosa, angustia-se na defesa do que só os néscios contestam. Levanta-se,
gesticula, torna-se a tonitruante voz da sabedoria. O futuro foi desenhado à
sua própria imagem, e, nele, enquadrou quem está em volta. Planejou os ideais
do consorte, a profissão dos filhos, a existência, enfim. Vai frustrar-se,
evidentemente, então apontará um culpado.
Claro, sem amor-próprio,
nos anulamos na opinião alheia; é muito tentador e arriscado dissolver-se nos
cotejos cotidianos. No excesso de autoamor, contudo, elidimos a realidade. Nas
refregas do existir, o narciso de cada um de nós tem uma que outra vitória, mas
é, também, vencido todos os dias. Quem não “Reconhece a queda \ E não desanima”
(Paulo Vanzolini), mitiga o desconforto com a imagem especular inflada: “Quando
eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto \ Chamei de mau gosto o que
vi, mau gosto \ É que Narciso acha feio o que não é espelho” (Caetano Veloso).
Familiar, não?
O mundo dói: se escolhemos, dor pelo deixado; dor se não somos desejados;
dor porque nossa juventude se esvai. Parece, não gostam de nós: costumes são
substituídos, ideias saem de moda, entes queridos morrem, sonhos são
dissipados. Pois é, o mundo não vai nos servir, então, se não nos precatamos,
toca-nos melancolia, um luto triste. Mas, algum resguardo, lambe as feridas:
“Levanta, sacode poeira \ E dá a vota por cima” (Paulo Vanzolini). E se ajuste
com Narciso: goste-se um tanto, namore um pouco, faça humor consigo mesmo e não
se tenha em tanta conta. A vida transita mais fácil.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista
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