O Brasil e o mundo vivem uma das maiores e mais profundas crises de saúde e, que jamais passou pela imaginação da população, tampouco dos melhores filmes de ficção.
De toda forma, passados aproximadamente um ano do
início da pandemia, o mundo já começou a ser imunizado, graças a ciência e ao
esforço de empresas privadas para estudar e conseguir criar uma cura para o
novo coronavírus.
Com efeito, a maioria dos Países caminhou e
organizou-se para adquirir e distribuir as vacinas para a sociedade, enquanto o
Brasil dividiu-se, politicamente, para distrair os eleitores para as próximas
eleições.
A “corrida” pelas vacinas, mundo a fora, a indevida
divisão política brasileira e a demora para a vacinação da população, geraram
nos cidadãos brasileiros um sentimento de desespero e, assim, tão logo as
vacinas aterrissaram no Brasil, foi possível perceber algumas condutas ilícitas
daqueles que deveriam cuidar dos nossos idosos.
As condutas “ilícitas” puderam ser vistas por meio
da imprensa que divulgou imagens de alguns agentes de saúde que, ao invés de
vacinar os idosos estavam, literalmente, fingindo a aplicação.
De acordo com as imagens veiculadas pela imprensa,
é possível visualizar os responsáveis pela vacinação, injetando a agulha, sem,
contudo, pressionar a ampola, de modo a apenas furar o paciente e permanecer
com o remédio para si. Também foi possível verificar em outros casos que os
idosos estavam sendo “vacinados” sem o imunizante dentro das vacinas.
Esses atos apresentam diversas consequências.
Contudo, quem será responsabilizado, somente o agente que praticou a conduta
ou, também, o hospital, empregador do agente?
A esse respeito, é preciso dividir a resposta em
três etapas. Sob o aspecto criminal, cível e até mesmo administrativo.
Sob o aspecto criminal, especificamente em relação
a conduta daqueles agentes que fingem aplicar a vacina ou aplicam sem o
imunizante, a conduta é extremamente grave, pois, efetivamente, o paciente,
após ser imunizado, imagina que pode praticar atividades que antes não poderia,
relaxando as suas medidas de proteção.
Ou seja, o agente confia que foi imunizado, relaxa
as suas medidas de proteção e, por fim, pode acabar contraindo a doença.
De efeito, a conduta do agente que pratica esse
atentado à vida do cidadão idoso amolda-se ao crime de homicídio previsto no
artigo 121 do Código Penal, na exata medida em que o agente de saúde é
“garante” daquela pessoa que imagina estar sendo imunizada, sendo, portanto,
diretamente responsável por causar eventual resultado (art. 13, §único do
Código Penal).
Assim, o agente não só expõe a vida e a saúde de
outrem a um perigo iminente, mas, por ser “garante” e ter a assumido a
obrigação de proteger o cidadão com a aplicação da vacina, acaba por assumir o
risco de matar.
É evidente, pois, que para condutas tão graves e
deste jaez, o artigo 121 do Código Penal, que prevê pena de seis até 20 anos,
adequa-se, em tese, aos casos de falsa aplicação da vacina.
Há quem diga que o golpe da vacina poderia ensejar
a aplicação do artigo 132, do Código Penal (“expor a vida ou saúde de outrem a
perigo direto e iminente”), contudo, tal delito é subsidiário, ou seja, somente
se aplica se a conduta não constitui crime mais grave.
Assim, levando-se em conta a conduta praticada, a
pena prevista no artigo 121 do Código Penal (6 a 20 anos) e aquela do artigo
132 (03 meses a 01 ano), é evidente que o crime mais grave é mesmo o de homicídio,
daí porque este deve ser aplicado aos casos do “golpe da
vacina”.
No que se refere a responsabilidade do hospital,
cumpre mencionar que no âmbito do Direito Penal não há como atribuir a
responsabilidade criminal ao hospital, pois, dentre outras lições apreendidas
desde o início da academia, não há responsabilidade penal da pessoa jurídica no
Direito Penal, sem prejuízo de sua possibilidade no Direito Ambiental.
No Direito Civil, a responsabilidade dos envolvidos
estará vinculada aos danos eventualmente suportados pelo paciente, que poderá
ser de ordem material, quando atingir de alguma forma o patrimônio da vítima e,
moral, na hipótese em que o prejuízo tenha repercussão na saúde do paciente, na
exata medida em que a vida, a saúde, dentre outros direitos fundamentais,
compõe os direitos de personalidade do cidadão.
Ainda no âmbito do Direito Civil, para que um
profissional liberal seja condenado a indenizar qualquer vítima, é fundamental
que se demonstre ação culposa (imprudência, imperícia, negligência) no
exercício de sua profissão. Da mesma forma, é necessário que exista uma
correlação de causa e efeito entre a conduta e o dano sofrido.
Em relação a responsabilidade civil dos hospitais e
serviços de saúde congêneres, o sistema de responsabilidade é um pouco distinto
e deve ser avaliado de forma particular, visto que a apuração do elemento culpa
torna-se desnecessária, nos termos da Lei. Por exemplo, se for verificado algum
defeito em determinado equipamento do hospital que venha ocasionar um acidente
que afete o paciente, haverá responsabilização e dever de indenizar, ainda que
não seja culpa dos agentes envolvidos. O hospital assume total responsabilidade
pelo dano baseado no risco que seu próprio negócio pode trazer à saúde de seus
pacientes. Na atividade relativa à vacinação, se aplicaria a mesma lógica.
Contudo, quando se avalia a responsabilidade do
hospital em conjunto com a atuação do médico, como em uma cirurgia realizada em
ambiente hospitalar, a lógica é diferente: o hospital será responsável,
juntamente com o médico, em casos de “má-prática”, apenas se houver
identificação da culpa do profissional e se este tiver alguma relação jurídica
com o hospital, como no caso de o médico ser prestador de serviços ou
funcionário.
Por fim, do ponto de vista administrativo, os
profissionais envolvidos nas situações antes descritas deverão responder
eticamente pela conduta perante seus respectivos órgãos de classe, tendo em
vista a clara violação de preceitos e valores de sua profissão, especialmente
aqueles relacionados à saúde, dignidade e vida do paciente. Haverá também,
potencialmente, espaço para a instauração de um procedimento administrativo de
natureza disciplinar, a depender da relação existente entre o autor do ato
ilícito e a Administração Pública.
Tais processos de natureza ética tramitam nos
conselhos de classes profissionais, autarquias criadas por Lei que têm como
objetivos principais representar a classe, regulamentar a atividade
profissional e fiscalizar o exercício da profissão. Os médicos, por exemplo,
responderão a processos éticos no Conselho Regional de Medicina em que exerce
seu ofício, e as decisões proferidas poderão ser revistas pelo Conselho federal
de Medicina. As penalidades estão previstas nos códigos de ética de cada
profissão, que geralmente estabelecem desde penas mais brandas (advertência)
até as mais severas (cassação do exercício profissional). Os profissionais
denunciados terão direito à ampla defesa e ao contraditório e poderão sempre
contar com a assistência de um advogado.
Resumidamente, tratando-se especificamente do caso
da vacinação e projetando um cenário em que entidades privadas e médicos venham
a participar da campanha, a responsabilização dos profissionais seguirá a ordem
de ideias antes apresentada: condutas culposas – e no limite, intencionais (na
absurda hipótese do “golpe da vacina”) – poderão ensejar ações de natureza
cível, ética e criminal, valendo registar que essas instâncias são
independentes, o que significa que uma mesma conduta poderá ensejar processos
em todas as referidas esferas, com diferentes punições.
Alan Skorkowski - advogado graduado pela Faculdade
de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito
Civil e Direito do Consumidor pela EPD - Escola Paulista de Direito. Sócio do
escritório Marques e Bergstein Advogados Associados.
Gabriel Huberman Tyles - advogado criminalista,
professor universitário e graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É
especialista pela PUC-SP em Direito Penal e Processo Penal, mestre pela PUC-SP
em Direito Processual Penal. Atualmente, é sócio do escritório Euro Filho e
Tyles Advogados Associados.
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