Crentes insistem em uma afirmação falsa: a ciência e a religião convergem. Não é verdade. A ciência trabalha com perguntas; a religião vive de “respostas” prontas. A ciência, por método, conspira contra suas conclusões; a religião, quando pode, impõe suas conclusões. A ciência, por definição, é provisória; a religião necessita ser definitiva. A ciência é verificável; a religião é irracional. A história da ciência é feita de dúvidas investigadas; a história da religião professa dogmáticas. A ciência salva vidas de pessoas vivas; a religião promete a salvação de mortos (que serão ressuscitados).
Se há uma semelhança entre ciência
e religião é que ambas são negócios do mundo. São mercadorias. A vacina é uma
invenção da ciência: ela é vendida (ainda que você não pague por ela, os
governos pagam). O conforto esperançoso é uma invenção da religião: ele é
vendido (você paga por ele em forma de dízimo, oferta, taxas, laudêmio etc).
Quando medidas sanitárias
determinam o fechamento do comércio, encerra-se a circulação de mercadorias no
seu último ponto de realização: o consumidor final. Ao determinarem que templos
evangélicos e igrejas católicas cerrem suas portas, os consumidores de
divindades deixam de comprá-las, trazendo prejuízo ao mercado da fé.
“Lideranças e
representantes de instituições católicas, evangélicas, judaicas e muçulmanas
avaliam que o impacto da Covid-19 no país combinado a restrições na realização
de cultos presenciais trouxe dificuldades financeiras e limitações para as
entidades religiosas. Há casos em que se calcula queda de mais da metade da
receita global, além de enxugamento e até desaparecimento da arrecadação com
eventos religiosos” (Bernardo Mello, O Globo, 07abr21).
Em face de alegado direito
de crença, quando de fato o interesse não é o Direito, mas a pecúnia,
religiosos buscaram o STF para que casas de oração (e de fazer dinheiro) fossem
abertas ao público devoto. Mas, o que pareceria uma contenda entre Estado e
religião foi resolvido com base em argumentos da ciência. Seja: o Estado
arbitrou sobre a religião com base na ciência. Vejam-se os votos (editados) dos
Ministros do STF.
Gilmar Mendes: “O país se
tornou um pária internacional no âmbito da saúde. Diante desse cenário, faz-se
impensável invocar qualquer dever de proteção do Estado que implique a negação
à proteção coletiva da saúde. Ainda que qualquer vocação íntima possa levar à
escolha individual de entregar a vida pela sua religião, a Constituição de 88
não parece tutelar um direito fundamental à morte”.
Alexandre de Moraes: “O
mundo ficou chocado quando morreram 3 mil pessoas nas torres gêmeas. Nós
estamos com 4 mil mortes por dia. Me parece que algumas pessoas não conseguem
entender o momento gravíssimo dessa pandemia. O Poder Público tem a obrigação
constitucional de garantir a liberdade religiosa, mas não pode ser
subserviente, não pode ser conivente com dogmas ou preceitos religiosos de uma
ou várias fés. Não pode se abaixar aos dogmas, colocando em risco sua própria
laicidade e a efetividade dos demais direitos fundamentais, no caso em questão,
direito à vida e à saúde. O Estado não se mete na fé. A fé não se mete no
Estado”.
Edson Fachin: Não se trata
apenas de restrição a reunião em igrejas, mas restrição a todos os locais de
aglomeração. Inconstitucional é a omissão que não age de imediato para impedir
as mortes evitáveis. Inconstitucional é recusar as vacinas que teriam evitado o
colapso de hoje”.
Luís Roberto Barroso: “Nós
nos atrasamos em obrigar o uso de máscaras, em fomentar o isolamento e em
comprar vacinas. Em triste ironia, muitos negacionistas já deixaram essa vida
em razão da pandemia. Fé e ciência são dimensões diferentes da vida. No espaço
público, deve vigorar a razão pública. Os fiéis também circulam e podem ser
vetores de transmissão”.
Rosa Weber: “A nefasta
consequência do negacionismo é o prolongamento da via crucis que a nação está a
trilhar, com o aumento incontido e devastador do número de vítimas e o
indesejável adiamento das condições necessárias para a recuperação econômica.
Diante de evidências científicas, houve sinalização de colapso do sistema de
saúde. Liberar os cultos favoreceria a morte, quando deve ser prestigiada e
defendida a vida”.
Carmen Lúcia: “Sobram dores
e faltam soluções administrativas. O Brasil tornou-se um país que preocupa o
mundo inteiro, pela transmissibilidade letal desse vírus. Não é algo que se
possa subestimar. É uma situação gravíssima, alarmante, aterrorizante e que
realmente demanda um comportamento do Estado”.
Ricardo Lewandowski: “Não
há como deixar de optar pela prevalência do direito à vida, à saúde e à
segurança sobre a liberdade de culto, até que nós nos livremos dessa terrível
pandemia que assola o país e o mundo. Nada impede que fiéis, enquanto
perdurarem essas restrições, amparadas em critérios científicos, lancem mão de
recursos tecnológicos para exercerem a liberdade de culto”.
Luiz Fux: “O momento de
conforto espiritual ao lado de parentes, em número reduzido, mas cada um nos
seus lares. É momento de deferência à ciência. Malgrado estejamos num estado
democrático de direito, vivemos num estado de calamidade pública. Muito embora
a Constituição consagre a liberdade de culto, crença e consciência, admitem-se
medidas excepcionais”.
Dos 11 ministros do
Supremo, eu trouxe o voto de 8. Todos fundamentados em argumentos da ciência.
Dois demais (3), Marco Aurélio ressalta a importância do que nomeou “vacina do
isolamento”. Nunes Marques quer templos abertos com fiéis tomando cuidados
científicos, desconsiderando que o cuidado científico mais recomendado é o
isolamento. Diz que “Mesmo as igrejas estando fechadas, nem por isso estará
garantida a redução do contágio”. Um contrassenso, pois o que se garante é que
o contágio não aumentará.
“Momento de deferência à
ciência” (Luiz Fux, presidente do STF). A ciência, pois, prevaleceu sobre a fé.
Bem, mais ou menos, não obstante haver sido um round importante. Prevaleceu
nesse caso dos cuidados com o Coronavírus, que assombra a todos pela violência
com que se impôs à humanidade, incluindo os crentes, completamente abandonados
à própria sorte por sua divindade protetora, o deus semita; ou “abandonados”
aos cuidados científicos, quando alguma réstia de ciência os alcança e eles
procuram um médico. Bem pensado, isso tem causa:
“O nosso deus talvez não
seja um deus muito poderoso, e poderá ser capaz de efetuar apenas uma pequena
parte do que seus predecessores prometeram. Não será por causa disso que
perderemos nosso interesse no mundo e na vida, pois dispomos de um apoio
seguro. Acreditamos ser possível ao trabalho científico conseguir um certo
conhecimento da realidade do mundo, conhecimento através do qual podemos
aumentar nosso poder e de acordo com o qual podemos organizar nossa vida.
A ciência já nos deu provas
de não ser uma ilusão. Ela conta com muitos inimigos por ter enfraquecido a fé
religiosa e por ameaçar derrubá-la. É censurada pela pequenez do que nos
ensinou e pelo campo incomparavelmente maior que deixou na obscuridade. As
pessoas se esquecem de quão jovem ela é, quão difíceis foram seus primórdios e
quão infinitesimalmente pequeno foi o período que decorreu desde que o
intelecto humano ficou suficientemente forte para as tarefas que ela
estabelece.
Existem diversos campos em
que ainda não superamos uma fase de pesquisa na qual fazemos experiências com
hipóteses que em breve têm de ser rejeitadas como inadequadas; em outros
campos, porém, já possuímos um cerne de conhecimento seguro e quase
inalterável. Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que
aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar” (O
Futuro de uma Ilusão, Sigmund Freud, editado.
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário