É famosa a frase de Jesus: ‘haverá grandes terremotos, pestes e fomes; haverá também coisas espantosas.’ Em épocas de pandemia e calamidades, trechos bíblicos como esse sempre reaparecem, evocando o fim da humanidade. Foi assim, por exemplo, nas guerras mundiais, na Gripe Espanhola, nas epidemias de varíola e na Peste Negra. Portanto, trata-se de uma ideia recorrente no ocidente.
Analisando
o contexto histórico que Jesus viveu podemos compreender melhor esse versículo.
A palestina do primeiro século estava sob o jugo do Império Romano, que
controlava os súditos com mãos de ferro, aplicando toda forma de castigo -
cruzes eram partes constantes da paisagem. Muitos esperavam que um messias ou
cristo (do hebraico e grego, o ‘escolhido’) reestabelecesse o antigo reino de
Israel, desaparecido há mais de 600 anos. A célebre profecia citada, proferida
pouco antes da crucificação, provavelmente se referia ao Templo de Jerusalém. Ao
dizer que não restaria pedra sobre pedra daquele imenso edifício, Jesus foi
indagado sobre quando isso iria ocorrer. E foi com esse argumento específico
que ele teceu suas previsões.
Há
dois problemas aqui: um de caráter histórico e outro, teológico. O primeiro é
de difícil resolução, posto que, como sabemos, os evangelhos foram escritos
algumas dezenas de anos após a morte do profeta, o que nos impede conhecer o
teor primário das suas palavras. Tendo a crer que realmente o Jesus histórico
trouxe uma mensagem escatológica (do grego, ‘estudo do fim’) e que diversos
trechos podem ecoar ditos originais, ainda que registrados tardiamente,
como explico no livro “Jesus - um breve roteiro histórico para
curiosos” (Chiado, 2021).
O
segundo ponto tem a ver com questões religiosas. É preciso entender que o
cristianismo primitivo era bem diferente do orbe cristão atual. Ainda que em
ambos os mundos - o moderno e o antigo - o fim dos tempos seja uma presença
constante, é na delimitação desse fim que as crenças destoam. Vários cristãos
enxergaram o apocalipse no ano 70 d.C., no grande cerco romano, quando o templo
foi derrubado. Aquele episódio caótico deve ter parecido como um cumprimento de
velhas profecias. Quando ficou claro que não era uma hecatombe total, os
cristãos começaram a postergar esse epílogo e cada época viu os últimos dias
próximos de si. Foi assim com a pregação dos mártires paleocristãos ou com o
frenesi religioso medieval, que via o apocalipse em qualquer guerra ou peste.
Portanto,
muitos ansiaram o fim do mundo em diferentes períodos, ainda que pelos mesmos
motivos: guerras, fome e pestes. E em qualquer momento essa tríade
fez sentido. E fez sentido por causa de um costume recorrente: sempre
olhamos aquela predição de forma anacrônica. Ainda que não possamos
ouvir a fala original de Jesus, perdida no nevoeiro da primeira tradição oral,
podemos afirmar com razoável grau de certeza: ninguém esperava que o planeta
perduraria por tanto tempo.
Em
uma ocasião difícil como a nossa, assolada por uma pandemia assustadora, não
podemos esquecer: assim como antes, o mundo sobreviverá. Em cada cataclismo
anunciado, a sociedade se reciclou e a mensagem cristológica também. E talvez
aí esteja a beleza maior do cristianismo: a incrível capacidade de renascer e se adaptar.
Hoje, o que deve importar é o amor pregado por Jesus, que aponta para uma
realidade menos escatológica e mais fraterna.
Visto
dessa forma, Jesus tinha razão: são em épocas de crises que velhos sistemas
desabam e novos alicerces nascem. Que o novo período pós pandêmico seja, enfim,
aquele preconizado pelo profeta da galileia: de amizade e tolerância.
Alex Fernandes Bohrer - um professor
brasileiro, natural do estado de Minas Gerais. Possui licenciatura e
bacharelado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, mestrado e
doutorado em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas
Gerais. Foi historiador da Prefeitura Municipal de Ouro Preto, produzindo uma
série de textos sobre a história deste sítio, importante Patrimônio da
Humanidade (UNESCO). Foi membro titular do Conselho de Patrimônio e do Conselho
de Turismo de Ouro Preto. Foi professor da FAOP (Fundação de Arte de Ouro
Preto), onde lecionou as disciplinas História da Arte, Iconografia Cristã e Barroco
Mineiro. É fundador e coordenador do NEALUMI (Núcleo de Estudos da Arte Luso
Mineira). Atualmente é Professor Efetivo do IFMG (Instituto Federal de Minas
Gerais), onde leciona as disciplinas História, História da Arte, Estética e
Iconografia e Simbologia. Entre outras obras, é autor dos livros “Ouro Preto -
Um Novo Olhar”, “O Discurso da Imagem - Invenção, Cópia e Circularidade na
Arte” e “Jesus - Um breve roteiro histórico para curiosos”.
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