O Brasil está na muito desonrosa posição de ser o quinto país do mundo em registros de feminicídios, o assassinato de mulheres por serem mulheres, violência doméstica, discriminação de gênero, nomenclatura que desde 2015 nos ajuda a calcular esses números e índices, mas ainda não nos ajuda a mudar o quadro que visivelmente só piora. O primeiro semestre de 2019 marcou o aumento de 44% de aumento nos casos em comparação com o ano passado. Que que há?
Joana
correu para a porta para fugir e se livrar do agressor, o próprio marido,
depois de se desvencilhar dele que já a agarrara pelos cabelos porque ao entrar
em casa a encontrou falando ao telefone, baixinho, dando risadas. Ele não teve
dúvidas, ela devia, só podia, estar falando com um amante, combinando algum
encontro; e já chegou dando bordoadas. Joana não conseguiu sair. Foi morta a
facadas ali mesmo, na soleira da porta de dentro de sua casa. A amiga com quem
conversava ouviu tudo, o telefone largado na pressa, os gritos, os pedidos de
socorro que não pode atender. Nada pode fazer a não ser testemunhar que minutos
antes apenas tinha ligado para contar à Joana uma piada que ouvira, e antes que
esquecesse o final, como sempre acontecia. Ela própria falava baixinho do outro
lado da linha porque estava no trabalho e acredita que Joana sem perceber achou
que também devia ficar falando baixinho...
Um
grande amor sem fim, a paixão à primeira vista. Se conheceram e não mais se
largaram. Ele, alguns anos mais velho, ela saberia que já tinha casado algumas
vezes e tido sete filhos “por aí”. Mas isso ela soube mesmo só muito tempo
depois. Ele era bem relacionado, estrangeiro, arrojado, o homem fascinante. E
um dia deixou de ser.
Não
demorou a aparecer o bicho peçonhento que deve estar por trás da violência e
morte de tantas mulheres: o ciúme. Ciúme é doença, não tem nada de amor, tem
tudo de desconfiança. Cresce, se espalha, domina o cérebro e os pensamentos,
cria situações. Envenena. Faz perder a razão. Não há diálogo possível com os
infectados, inclusive sejam eles homens ou mulheres.
Valentina
não podia olhar para o lado, onde ia era seguida, passou a viver como em uma
prisão regime semiaberto. Ele buscava e levava ao trabalho; aliás, nenhum
prestava; ninguém prestava. Foram meses com a violência só crescendo, e quando
quis dar um fim ao namoro, ao que já não era nem de longe romance, só terror,
viu sua vida ameaçada. Suas coisas – todas – roubadas, quebradas, atiradas pela
janela, a porta derrubada a pontapés.
Valentina
está viva para contar a história porque fez como se faz no cinema para se
defender: a garrafa, batida, quebrada na ponta da mesa, caco afiado, para
conseguir sair e pedir socorro à vizinha. Teve que gritar, bater na porta dela,
que sim, ouvia a briga, mas nada tinha feito. Há algum tempo era ainda maior o
número de pessoas que acreditavam que “em briga de marido e mulher não se mete
a colher”. Provérbio idiota. Mete-se, sim. A colher e o que mais for preciso.
Chama-se a polícia.
A
caminho do hospital, machucada, Valentina até viu os policiais que foram
chamados: estavam às gargalhadas com o agressor. Anos mais tarde, me contou,
recebeu o telefonema de uma mulher que lhe perguntava como havia sobrevivido.
Estava grávida deste mesmo homem e temia pela sua vida e a do filho, vítima que
estava sendo de violência, ameaças, ciúmes, o roteiro completo.
Todo
dia sabemos de casos de mulheres violentadas, espancadas, mortas, muitas
assassinadas junto aos filhos, das formas mais torpes. Tem o que mata e depois
tenta forjar que foi suicídio. O que machuca e se arrepende e tenta socorrer,
contando as mesmas mentiras com lágrimas de crocodilo, culpando a escada de
onde ela teria caído sem querer, o escorregão no banheiro. Tem o que diz que
“se ela não é minha não será de mas ninguém” – é o que joga ácido no rosto,
mutila seus seios, quebra suas pernas. Alega que ambos estavam bêbados ou
drogados ou “que foi ela que começou”.
Antes
que alcancemos o topo da lista mundial, o Brasil tem de mudar esse quadro, de
incentivo à violência em várias áreas, inclusive na política e na liberação
de armas. Tem de cuidar da proteção efetiva, que funcione não apenas em um
papel com ordens judiciais que enfim não protegem ninguém. Não adianta nada
vermos as lindas reportagens sobre patrulhas que sabemos que não existem na
realidade para a população, principalmente a mais pobre e que mora em regiões
mais afastadas. Botões que a mulher aperta sem parar e o pânico de se
encontrar sozinha com seu algoz.
O
medo e a violência contaminam o ao redor, de quem teme ou passa a temer até
se aproximar, prestar ajuda nesses casos, e como vemos até hoje acontecer. A
mulher demora – algumas, muitos anos - a conseguir se desvencilhar, acabam se
afastando de todos, para não “provocar”, para que ninguém mais se machuque,
nesse círculo alucinante e cruel.
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Denuncie. Ligue 180. Ajude, se souber de alguém nessa
situação terrivelmente solitária. Não são “companheiros”, nem “ex-companheiros
ou ex-maridos” estes homens. São monstros, assassinos. Aliás, o pessoal do
jornalismo do SBT/interior adotou como regra jamais usar a palavra companheiro
nos casos que acompanham. Muito bem, uma coisa a ser feita, entre tantas que
faltam.]
MARLI GONÇALVES
– Jornalista,
consultora de comunicação, editora do Site Chumbo Gordo, autora
de Feminismo no Cotidiano- Bom para mulheres. E para homens também, pela
Editora Contexto. Lançamento oficial 20 de agosto, terça-feira, a partir das 19
horas na Livraria da Vila, Alameda Lorena, 1731, São Paulo, SP. Já à venda nas
livrarias e online, pela Editora e pela Amazon
(marligoncalvesjornalista –
o ç deixa o link assim)
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