Cremos ser insuspeitos, porquanto já registramos que a história do
gênero humano foi escrita pela metade\: a história masculina. Entretanto, homem
é vocábulo que carrega ambos os significados, de gênero e de espécie. Nada
contra. Todos entendem quando nos referimos ao homem como humanidade e ao homem
como ser masculino. Um neologismo como feminícidio em nada auxilia a nobre luta
das mulheres. Simplesmente a demoralizam face aos
interessados em desmoralizá-la.
Os atos criminosos estão descritos pelo Código Penal, não tão obsoleto
como se imagina porque emendado de cabo a rabo. Outro é necessário, mas por
simples higiene jurídica. O direito e, principalmente, o direito penal, não
pode conviver com leis de palavras desnecessárias ou imprecisas, até
porque a primeira das interpretações é a literal (da letra). No caso a caso, correntio, de palavras imprecisas ou mal
empregadas na lei, os juristas são obrigados a recorrer aos demais métodos de
interpretação (hermenêutica), o que torna a realização do direito mais
complexa, quando o ideal jurídico, como pregava Beccaria e outros ilustres
cientistas do direito, está no contrário, é dizer, na simplicidade.
O direito penal sempre conviveu com suas duas únicas expressões
literais de crimes contra a vida: o homicídio (procedimento que provoca a morte
de qualquer pessoa) e o infanticídio, que não é o crime contra a vida de uma
criança, conforme se diz de modo impensado, mas a morte do filho pela própria
mãe em estado puerperal, concomitantemente ou imediatamente seguinte ao parto.
Infelizmente, homicídios no Brasil acontecem a todo momento, mas infanticídios
são raros. O direito penal, a bem da ciência jurídica e sua objetividade, não
pode ter sua descrição dos crimes contra a vida inflacionada por neologismos, o
que seria um insulto à nossa língua e o tornaria complexo e maltratado em seu
objeto.
Jamais foi necessário o emprego do termo "feminicídio", que
nenhum dicionário registra, para que os homicidas de mulheres forem punidos, na
forma da lei. Se esta é benevolente em relação aos mencionados crimes,
certamente isso não se deve às palavras contidas no Código Penal. E sua
mudança, sem mudança da lei, em nada auxilia o justo movimento das mulheres,
soh uma perspectiva geral.
Isso, antes de dizer que ficamos arrepiados quando nossa língua é
vilipendiada. Linguagem é algo muito sério, que permitiu a vida em sociedade, a
comunicação necessária e correta, a existência da vida humana globalmente
organizada. Neologismos são admissíveis, quando o vocábulo foi amadurecido nos seios dos costumes populares, como
"feminismo".
Os ataques à língua, sobretudo por ideólogos, que imaginam que ela seja
responsável por agravos políticos que combatem, causam-me estremecimentos. No
ponto não poderíamos deixar de procurar Fernando Pessoa, em sua obra prima,
"O Livro do Desassossego", quando pronuncia, ancorado na autoridade
de um dos maiores poetas da língua portuguesa:
"Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As
palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades
incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim
interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho - transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim
cria ritmos verbais, ou os escuta os outros. Estremeço se dizem bem. Tal página
de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar minha vida em todas as
veias... Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia
sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa
movida...Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa
que me têm feito chorar... Não tenho sentimento nenhum político ou social.
Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a
língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde
que me não incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com
o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe
sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita,
como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia
sem ípsilon, como um escarro directo que me enoja independentemente de quem o
cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e
ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto
régio, pelo qual é senhora e rainha."
Dê-se ao poeta, de barato, o excesso do politicamente incorreto.
Transportando-se essas machucaduras, presentes, inclusive, em livros oficiais,
escolares, "ao bem democrático dos excluídos", à realidade biológica,
tais invenções "geniais" à linguagem, neste caso, equivalem a um
corpo sujo. De machos e fêmeas.
Amadeu Roberto Garrido de Paula
- advogado e membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas.
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