A
decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia, após o resultado do
plebiscito de 23 de junho de 2016, levantou uma série de dúvidas e incertezas
para quem detém ou comercializa bens e direitos de propriedade intelectual no
Velho Continente. Afinal, a partir de 29 de março de 2019 - data em que
ocorrerá o chamado Brexit -, marcas, patentes e obras autorais inglesas
continuarão protegidas nos 27 países da União Europeia e vice-e-versa?
Apesar
de estarmos a apenas um ano da oficialização do Brexit, muito pouco foi
definido até o momento. A Comissão Europeia recentemente publicou uma minuta de
acordo referente aos direitos de propriedade intelectual, propondo um período
de transição, a expirar em 31 de dezembro de 2020. Durante esse intervalo, as
diretivas da União Europeia e os sistemas unificados de registro continuariam
válidos para a Grã-Bretanha. No entanto, trata-se apenas de um rascunho
inicial, ainda sujeito a alterações, com lacunas sobre uma série de questões e
direitos e que, sobretudo, deixa incertezas quanto ao que acontecerá após o
término do período de transição.
Dessa
forma, o futuro da propriedade intelectual inglesa e europeia dependerá
principalmente das negociações acerca dos termos do acordo, principalmente no
que diz respeito ao cenário após dezembro de 2020. Caso se opte por uma saída
moderada, com a permanência do Reino Unido no Espaço Econômico Europeu, os
regimes atuais de proteção devem sofrer poucas alterações. Já na hipótese de
uma ruptura radical, a unificação dos sistemas de registro, da legislação e da
jurisprudência sobre os bens autorais e industriais ficarão seriamente
ameaçadas.
Impossível
saber de antemão afinal qual será o caminho que o Brexit seguirá. O Governo
Britânico tem insistido num discurso nacionalista, especialmente no que se
refere ao controle imigratório e aduaneiro – o que significaria uma saída
radical, até mesmo do Espaço Econômico Europeu. Porém, como os marcas,
patentes, obras autorais e demais artigos do gênero representam uma parcela
significativa da economia inglesa, é provável que o Reino Unido tente negociar
com uma alternativa moderada, de modo a manter uma unidade com os demais países
europeus na proteção da propriedade intelectual.
A
proteção das obras artísticas e literárias é o campo que menos deve ser afetado
pelo Brexit. Isso porque os atuais países da União Europeia (incluindo a
Inglaterra) são individualmente signatários dos principais tratados
internacionais sobre a matéria, a exemplo da Convenção de Berna e do Acordo
TRIPS. Dessa forma, algumas regras básicas (como a dispensa de registro para
proteção das obras) continuarão a ser observadas tanto pelas leis do Reino
Unido quanto pelos demais países europeus. No mesmo sentido, não sendo
necessário o registro das criações autorais, não há o risco de uma obra
produzida na Inglaterra não ser protegida na União Europeia e vice-e-versa.
Por
outro lado, como os tratados internacionais preveem uma proteção mais branda do
que aquela adotada atualmente no nível europeu (por exemplo, o prazo de
proteção na Europa é de 70 anos, enquanto a Convenção de Berna exige pelo menos
50 anos), a Inglaterra estará livre para mudar suas leis internas, reduzindo os
direitos autorais ao mínimo previsto nos acordos. Esse cenário, porém, é
altamente improvável.
Assim,
a maior preocupação, nessa área, diz respeito à exaustão dos direitos.
Esse
princípio (que também se aplica aos demais bens intelectuais, de que trataremos
futuramente) diz que, uma vez licitamente colocada a obra em circulação no
mercado – isto é, com autorização do titular dos direitos intelectuais – este
deixa de ter o controle sobre os artigos vendidos, na medida em que terá
recebido a devida remuneração por eles. Em outras palavras, se alguém quiser
revender a obra por um preço maior, ou explorá-la de alguma outra forma (por
exemplo, por meio de aluguel), o titular dos direitos intelectuais não pode se
opor, nem exigir uma parte da remuneração por esse novo aproveitamento (salvo
convenção em contrário ou algumas exceções que não vêm ao caso).
Atualmente,
a União Europeia adota o princípio de exaustão regional: isto é, se a obra for
licitamente posta em circulação em qualquer dos países membros, o titular dos
direitos intelectuais perde a prerrogativa de impedir que as cópias já vendidas
sejam comercializadas novamente em qualquer das outras nações integrantes do
bloco.
A
minuta de acordo apresentada pela Comissão Europeia estende o cenário corrente
(ou seja, a exaustão regional) até o término do período de transição. Após
dezembro de 2020, o Reino Unido poderá adotar três possibilidades diferentes: o
princípio nacional (isto é, a exaustão só acontece na próprio país, não podendo
terceiros exportar as obras para outros territórios sem a autorização do
titular dos direitos intelectuais); o princípio regional europeu (explicado
acima); ou o princípio internacional (ou seja, uma vez posta a obra em
circulação, se esgota o direito de o titular impedir a revenda para os demais
países).
Qualquer
que seja a escolha do legislador inglês, o princípio de exaustão adotado pela
União Europeia deixará automaticamente de cobrir o Reino Unido. Em outras
palavras, o titular europeu terá o direito de exclusividade sobre a exportação
para a Grã-Bretanha, mas os titulares britânicos não poderão impedir que uma
obra cuja exportação tenha sido autorizada, digamos, para a França seja
revendida novamente para qualquer demais nações integrantes do bloco. Para
evitar esse cenário desfavorável, o Governo Britânico deverá negociar um acordo
com a bloco europeu, de modo que esta passe a estender o princípio da exaustão
ao Reino Unido após dezembro de 2020.
Independentemente
de a saída da Grã-Bretanha da União Europeia autoral não vir a afetar tanto o
regime de proteção dos direitos autorais, recomendamos que as pessoas físicas e
jurídicas que comercializem criações literárias ou artísticas no continente europeu
(incluindo obras musicais, cinematográficas e programas de computador) revisem
seus contratos, de modo a refletir as alterações legais que o Brexit venha a
causar, bem como para mencionar (ou excluir, conforme o caso) o Reino Unido
como território coberto pela licença.
Rodrigo Valverde - Sócio do escritório de advocacia SV
Law, Rodrigo Valverde é advogado com mais de 12 anos de experiência no setor.
Trabalhou em escritório como Mattos Filho, Souza Cescon e no Submarino S.A.,
tendo participado da fusão da empresa com a Americanas.Com, dando origem a
criação da 3ª maior empresa de ecommerce do mundo à época, a B2W. É professor
convidado da Universidade Presbiteriana Mackenzie, palestrante do HSM, já
participou do conselho de administração da Master Park (investida do Pátria
Investimentos) e contribui para a melhoria do ambiente de negócios no Brasil,
aconselhando empresas e fundadores a vencer no Brasil.
Luiz Guilherme Valente - Advogado especializado em Direito
Societário e Propriedade Intelectual, formado pela Universidade de São Paulo --
USP (2013). Doutorando em Direito Comercial pela USP (previsão de conclusão:
janeiro/2019). Especialista em Propriedade Intelectual pela Organização Mundial
da Propriedade Intelectual -- OMPI (2012). Visiting Fellow na Queen Mary
University of London, Reino Unido.