No Brasil, o automóvel é muito mais do que um meio de transporte. Ele é sonho, conquista, status, independência, e, não raro, um membro não oficial da família. Essa relação visceral entre o brasileiro e o carro ultrapassa o aspecto prático. Adquirir um veículo, para muitos, é cruzar a linha simbólica entre o "antes" e o "depois", uma transição quase ritualística que traduz o desejo de mobilidade, mas também de pertencimento e realização.
A paixão pelo carro no Brasil tem raízes profundas,
que misturam história, cultura e economia. Nos anos de crescimento econômico do
século XX, o automóvel era a promessa de modernidade, um símbolo de progresso
que chegou a ser exaltado nas propagandas da época. A construção de rodovias,
como a Brasília-Belém ou a Via Dutra, consolidou a imagem do carro como veículo
de integração nacional. Mas o que parecia ser uma revolução logística logo
transcendeu seu propósito funcional e ganhou o coração do brasileiro como uma
extensão da própria identidade.
A verdade é que o carro fala muito sobre quem
somos, ou quem gostaríamos de ser. Um sedã robusto, um SUV imponente ou até
mesmo um compacto econômico carregam mensagens sobre estilo de vida, aspirações
e prioridades. Para o jovem que adquire seu primeiro veículo popular, o carro
não é apenas um motor com rodas. É liberdade, é independência. Para a família
que sobe a serra em um utilitário, o carro se torna um espaço íntimo de
conexão, um lugar onde histórias são contadas, músicas são cantadas e memórias
são construídas. Há uma poética em cada trajeto, ainda que, por vezes, o
trânsito transforme o que poderia ser idílico em um desafio de paciência.
Esse fascínio cultural é, ao mesmo tempo, uma
bênção e uma responsabilidade. No Brasil, cada lançamento precisa dialogar com
essa psique coletiva que valoriza o design tanto quanto a funcionalidade, que
exige robustez para enfrentar estradas esburacadas, mas também deseja um toque
de sofisticação para transitar pelos centros urbanos. O brasileiro quer
tecnologia, conforto e economia, mas também quer que o carro tenha uma
personalidade quase tangível, que converse com seu dono em um idioma
silencioso, feito de potência, acabamento e presença.
Ao mesmo tempo, há peculiaridades fascinantes no
mercado. O financiamento de longo prazo, por exemplo, permite que pessoas de
classes econômicas variadas alcancem o sonho de ter seu carro próprio, ainda
que isso signifique compromissos financeiros extensos. Há também o carinho pela
personalização, que transforma carros em verdadeiros reflexos de seus
proprietários. Seja um adesivo no vidro, um sistema de som potente ou uma
pintura vibrante, o brasileiro tem um talento especial para dar alma a uma
máquina.
E é justamente por entender a profundidade dessa
relação que precisamos nos adaptar a um consumidor que está, sim, mudando. O
brasileiro de hoje está mais consciente sobre sustentabilidade, preocupado com
eficiência energética e atento ao impacto ambiental de suas escolhas. Modelos
híbridos e elétricos já começam a ganhar espaço, mas não é suficiente apenas
lançá-los. É preciso trazer soluções que conversem com a realidade do país,
onde a infraestrutura para esses veículos ainda engatinha. Mais uma vez, o desafio
não é apenas tecnológico, mas cultural: como transformar o fascínio pelo ronco
de um motor potente em uma paixão pelo silêncio elegante de um carro elétrico?
Há também a chegada de uma nova geração ao volante,
com valores distintos daqueles que moldaram o mercado até aqui. Jovens que
valorizam experiências mais do que posses questionam a centralidade do
automóvel, especialmente nas grandes cidades, onde o compartilhamento de
veículos e o transporte por aplicativos reconfiguram a ideia de mobilidade. Mas
mesmo esses jovens, que inicialmente podem parecer desinteressados em adquirir
um carro, frequentemente mudam de perspectiva quando chegam os filhos, a casa
própria ou a necessidade de fazer aquela viagem tão sonhada pelo interior do
Brasil. O carro, de alguma forma, acaba entrando em cena.
E, afinal, como poderia ser diferente? O carro é ao
mesmo tempo um espaço físico e emocional. Ele abriga as conversas solitárias,
as confidências entre amigos, as brigas de casal e as reconciliações. Ele é
cenário de aventuras e testemunha de rotinas. Quantos amores começaram em uma
carona? Quantos recomeços se deram ao cruzar a fronteira de uma cidade ao som
da música favorita no rádio? No Brasil, o carro é mais do que um veículo: é um
catalisador de histórias, um companheiro silencioso em nossas jornadas.
Por isso, inovar no setor automotivo no Brasil exige respeitar essa relação única e multifacetada. É compreender que o brasileiro não compra apenas um carro; compra sonhos, possibilidades e, muitas vezes, uma extensão do que é. Entre uma concessionária e outra, cada assinatura de contrato carrega consigo a promessa de liberdade e a realização de um desejo que, mais do que nunca, reflete a essência de quem somos. Afinal, aqui, as estradas não são apenas trajetos – são cenários de uma paixão que nunca sai de moda.
Luis Otávio Matias - ex-vice-presidente do Itaú com mais de 30 anos de experiência no mercado financeiro. Formado em Direito pela PUC-Campinas, é atualmente vice-presidente da Tecnobank.
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