Durante o período reprodutivo, espécie sul-americana passa a regular a temperatura corporal sem depender do ambiente externo e sem tremer. Com base em experimentos, pesquisadores da Unesp atribuíram fenômeno a aumento da quantidade e da atividade de mitocôndrias no músculo esquelético
Um grupo
de cientistas apoiado pela FAPESP conseguiu desvendar um mecanismo que permite
ao teiú (Salvator merianae) se aquecer com o calor do próprio corpo
durante o período reprodutivo, algo nunca antes observado em répteis. Os
resultados foram publicados na revista Acta
Physiologica, da Sociedade Escandinava de Fisiologia.
“De modo geral, apenas aves e
mamíferos são conhecidos pela capacidade de regular sozinhos a própria
temperatura [endotérmicos]. Répteis e outros animais, por sua vez, são
considerados ectotérmicos, pois dependem da temperatura externa para regular a
de seus corpos”, explica Livia Saccani Hervas, primeira autora do
trabalho, que começou a ser realizado ainda durante sua iniciação científica na Faculdade de
Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista
(FCAV-Unesp), em Jaboticabal.
Em 2016, o que se sabia sobre a
ectotermia dos teiús mudou, quando outro grupo de cientistas apoiado pela
FAPESP descobriu que, durante o período reprodutivo, os lagartos mantinham a
temperatura corporal mais alta do que a das tocas onde se abrigavam durante a
noite, quando não têm o sol para se esquentar (leia mais em: agencia.fapesp.br/22590).
Restava saber como eles faziam
isso. O mistério, ou parte dele, começou a ser desvendado pelo grupo do qual
Hervas faz parte, liderado pela professora Kênia Cardoso Bícego, da FCAV-Unesp, que
coordena o projeto “Capacidades e tolerâncias
fisiológicas frente a mudanças climáticas: explorando a dimensão funcional em
vertebrados ectotérmicos”, apoiado pela FAPESP.
Ao longo de três anos, a equipe
colheu biópsias do músculo esquelético de dez teiús durante o verão (fevereiro)
e na primavera (setembro e outubro). Os pequenos pedaços de tecido, retirados
de uma pata dianteira e de uma traseira, eram submetidos a análises bioquímicas
e também a um calorímetro, aparelho que mede o calor emitido pelas amostras.
“Precisamos de um longo tempo
para estabelecer os protocolos, como dosagem de reagentes, uma vez que esse
tipo de análise nunca tinha sido realizado nesses lagartos”, conta Bícego.
Os pesquisadores observaram
que, durante o período reprodutivo, o músculo de machos e de fêmeas de teiú
produzia muito mais mitocôndrias, organela que produz energia nas células.
Além disso, uma proteína
presente na mitocôndria chamada ANT, conhecida por um processo bioquímico que
gera calor em aves, era mais presente e mais ativa no período reprodutivo. É
nessa época que as fêmeas de teiú se preparam para a geração dos ovos e a
construção de ninhos, enquanto os machos buscam território e aumentam as
gônadas para se reproduzirem.
Outra proteína envolvida no
processo de gerar calor, mas em mamíferos, a UCP, não se mostrou ativa durante
os experimentos com os teiús. Assim, o músculo coletado no período reprodutivo
exibiu uma produção maior de calor do que no verão devido à atividade da ANT,
não da UCP.
Sem tremer
Até a descoberta de 2016, os
únicos répteis conhecidos por serem capazes de aumentar a temperatura corporal
por conta própria eram duas espécies de pítons, grandes serpentes asiáticas que
podem alcançar 5 metros de comprimento. O comportamento ocorre sobretudo
durante a fase de chocar os ovos.
No entanto, o aquecimento da
serpente ocorre quando os animais tremem, um recurso conhecido também em
mamíferos e aves. Ao agitar os músculos, geram calor. O teiú, por sua vez, não
treme para aumentar a temperatura.
A regulação de calor pode estar
relacionada com a produção de hormônios sexuais, que alcançam um pico no
período reprodutivo tanto em machos (testosterona) quanto nas fêmeas (estradiol
e progesterona). Outros hormônios abundantes nessa fase, como os da glândula
tireoide, estão envolvidos no gasto energético e na mobilização das reservas de
energia.
“Os hormônios da tireoide são
conhecidos por estimularem o aumento da quantidade de mitocôndrias nas células.
A elevação desses hormônios durante a fase de reprodução dos teiús pode estar
associada à maior abundância de mitocôndrias e, por consequência, à maior
atividade da ANT, a proteína que ajuda a produzir calor e que era conhecida em
aves”, diz Hervas, atualmente doutoranda na FCAV-Unesp.
Os resultados mostram, junto
com estudos já publicados por outros grupos, que mecanismos envolvidos na
endotermia podem ter surgido nos vertebrados ainda antes do que se previa. O
fato de estarem presentes em um grande lagarto (sem tremer) e em uma grande
serpente (com tremor), ainda que em um determinado período do ano, pode ser um
sinal de que o fenômeno é mais comum nos répteis do que se pensava.
“São dois animais de grande
tamanho corporal, em que o calor produzido internamente demora mais para se
dissipar. É possível que outros grandes répteis também tenham períodos em que
podem estar mais quentes do que a temperatura externa. Essa é a primeira
descrição em um lagarto, e ainda de região subtropical, de um mecanismo celular
de geração de calor muito parecido com o que ocorre em aves e mamíferos”,
encerra Bícego.
O estudo teve ainda entre os
autores Marcos Túlio de Oliveira,
professor da FCAV-Unesp também apoiado pela FAPESP, que coordena o
laboratório onde os experimentos de bioquímica mitocondrial foram realizados.
Outros participantes
foram Ane Guadalupe Silva, bolsista da FAPESP, Lara do Amaral Silva e Marina Rincon Sartori, que tiveram bolsa
da Fundação anteriormente.
O artigo Mitochondrial
function in skeletal muscle contributes to reproductive endothermy in tegu
lizards (Salvator merianae) pode ser lido em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/apha.14162.
André Julião
Agência FAPESP https://agencia.fapesp.br/desvendado-mecanismo-que-torna-teiu-o-primeiro-lagarto-capaz-de-produzir-calor-para-se-aquecer/52309
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