"O que quer dizer diz.
Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.” (Paulo
Leminski)
Às vezes, percebo que meu corpo não sabe o que
fazer comigo. Ou vice versa: os eus que fui construindo, com pedaços das coisas
que vi e desejei, não cabem no corpo que ora tenho. O certo, porém, é que a
inconformidade é patente. Aprendi, no entanto, e não sem muito esforço, a graça
da sublimação. Vou desviando por diversos dutos secundários, o desejo surdo de
correr sem peias, a vontade cega de gritar sem cansaço, de pegar o primeiro
ônibus, de sair do corpo, jogá-lo em um terreno baldio e deixar que a polícia
procure o culpado em vão, enquanto debocho de seus esforços inúteis.
Sinto, na medida em que o tempo passa, que a
existência é um refazer de um esboço no qual o que acredito que seja um Eu só é
percebido de relance, em meio às garatujas rabiscadas por muitas mãos inábeis e
distraídas.
Na medida em que vou ganhando um pouco de
discernimento de que as coisas (o)correm assim, curto maravilhado cada dia que
passa, ano que finda, década que começa, ciclo que se encerra, como se essas
marcas tivessem realmente o poder de fazer o que se propõem, isto é, dar
sentido para as coisas, para os tempos, para as pessoas. Sei que se me
concentrar bastante nessa narrativa, enlevo-me e embarco nela. Mas, quando
deixo-me ficar lá dentro de mim, essa ordem de tempo e espaço rapidamente se desfazem
e brinco com os meus carrinhos de lata, empurro pneus pelas ruas da vila, chupo
seriguelas tomadas do pé no quintal da casa abandonada. E se miro esse eu
menino, percebo ainda, dentro dele, muitas outras coisas se passando,
indiferentes ao calor da tarde ou aos incômodos do crescimento de seu corpo,
que distorcem seu rosto, seus braços e pernas, dando-lhe quenturas no colo.
Tento fixar meu olhar naquela paixão, naquele inconformismo, naquela raiva que
fermenta no corpo ainda franzino, amarronzado pela poeira dos quintais e pelo
sol nordestino. E ali, naquele redemoinho de sensações, vejo o eu de agora, tão
próximo, tão vívido, que reconheço o hálito do meu café da manhã de hoje cedo.
Vive-se, sabemos todos, em um tempo de identidades,
com tanta gente transformando cores e lugares em bandeiras, usando-as como
paredes de pano para demarcar espaços de existir. Olho isso tudo com simpatia,
embora, confesso, com um certo fastio, como se esse fosse um projeto menor para
depositar o tempo escasso. Meu tempo bom eu gasto com a busca dos traços comuns
em meio aos tantos personagens que encarnei ao longo da vida, as várias
identidades que assumi ou que me impuseram, não sem muitos desconfortos, mas
também várias satisfações. Rio sozinho da biografia que só eu conheço e que
surpreenderia mesmo aos que se julgam mais próximos. Diante do espelho, de vez
em quando, vejo o cúmplice dessas aventuras inconfessáveis lançando-me um olhar
maroto e, ao mesmo tempo, cheio de ameaças veladas de publicações apócrifas.
Por isso distancio-me de meu corpo, e não foram poucas as vezes em que me
surpreendi com uma foto inusitada desvelando-me algum aspecto estranho e
grotesco desse lugar onde habito. Minha esposa reclama de meu aparente relaxo,
com o peso, com as roupas, barba, cabelo, as unhas que crescem como gavinhas.
“O que pensarão de você?”, ela me diz, vexada. Cedo aos seus argumentos e faço
juras de me tornar um homem mais apresentável, digno de respeito e apreço. Mas,
em algum lugar dentro de mim, o menino com os lábios brilhando do sumo da
fruta, os fiapos do gomo ácido e nervurado aparecendo nos vãos entre os dentes,
sorri sem freios, gargalha, por um momento sem tempo, até que, aos poucos, vai
sumindo, como a noite que chega, e então preparo a agenda para os afazeres da semana,
do ano que termina, do ciclo que se encerra, como uma pessoa comum, ciosa de
suas marcas identitárias e de suas bandeiras de luta.
E vida que segue, porque foi assim que ficou
combinado com os russos.
Daniel
Medeiros - doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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