Partindo da premissa de que diretrizes, normas e princípios constitucionais devem ser respeitados pelas leis infraconstitucionais (leis hierarquicamente inferiores à Constituição Federal) o nosso propósito, ao tecer brevíssimas considerações sobre a Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021), é o de destacar a salutar importância do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana para melhor compreensão dos termos de acolhimento e tratamento dos superendividados (aqueles que se veem com a renda pessoal extremamente comprometida, com dívidas de consumo vencidas e vincendas, totalizando mais de 50% da renda mensal) e especialmente a inovação da negociação das dívidas de forma conjunta, envolvendo todos os credores (que assim desejarem) e contando com a homologação judicial.
A Constituição Federal prevê o mencionado princípio da dignidade
da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, nos
seguintes termos:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
(CF, artigo 1º, III)
O alcance da conceituação e do entendimento desse princípio é
descomunal, porque, como fundamento do Estado Democrático brasileiro, deve ser
observado, respeitado e, consequentemente, orientar a forma digna de existência
da vida humana e das relações jurídicas firmadas por qualquer pessoa, incluindo
as obrigações financeiras contraídas.
A Lei do Superendividamento traz como premissa de dignidade que
uma pessoa (de boa-fé) não pode se ver amedrontada em momentos de negociação de
dívidas contraídas, notadamente quando se tratar de dívida de valor extremado,
que retira da pessoa condições mais racionais e dignas de negociar valores, por
vezes, impossíveis de adimplemento.
O STF, na ADI 3.510/DF, assim se pronunciou sobre o princípio em
comento (com grifos nossos):
25.
A constitucionalização do princípio da dignidade da pessoa humana
modifica, assim, em sua raiz, toda a construção jurídica: ele impregna toda
a elaboração do Direito, porque elemento fundante da ordem constitucionalizada
e posta na base do sistema. Logo, a dignidade da pessoa humana é
princípio havido como superprincípio constitucional, aquele no qual se
fundam todas as escolhas políticas estratificadas no modelo de Direito plasmado
na formulação textual da Constituição. No inciso III do art. 1º da Constituição
brasileira, ele é posto como fundamento da própria organização política do
Estado Democrático de Direito nos termos do qual se estrutura e se dá a
desenvolver, legitimamente, a República Federativa do Brasil. A expressão
daquele princípio como fundamento do Estado brasileiro significa, pois, que
esse existe para o homem, para assegurar condições políticas, sociais,
econômicas e jurídicas que permitam que ele atinja os seus fins; que o seu fim
é o homem, e esse é fim em si mesmo, quer dizer, como sujeito de dignidade, de
razão digna e superiormente posta acima de todos os bens e coisas,
inclusive do próprio Estado. É esse acatamento pleno ao princípio que torna
legítimas as condutas estatais, as suas ações e as suas opções.
(STF
- ADI 3.510 / DF, decisão de 29 de maio de 2008, Relator Ministro Ayres Brito,
pág. 359)
Observados esses preceitos
de dignidade ao superendividado e condições de se manter as relações econômicas
que garantam o exercício de direitos e obrigações, a Lei do Superendividamento
busca o olhar cauteloso da imprescindível conscientização de se manter uma vida
financeira saudável e condizente com os rendimentos, com hábitos de consumo
compatíveis com a renda obtida, bem como formas de proteção digna ao
superendividado, que, muitas vezes, está nessa situação por razões de
desemprego, ou de perda brusca de rendimentos antes obtidos.
Por essa razão, dentre outras, a Lei do Superendividamento inova
na intervenção jurisdicional para negociação coletiva do devedor
superendividado com credores diversos, buscando o tratamento digno à pessoa e,
na nossa visão, uma forma de também atuar na melhor compreensão e ajuste de vontades
de todos os envolvidos nessa negociação coletiva. Isso também porque não há
dúvidas da importância do adimplemento dos créditos, mas, para que este
adimplemento ocorra, o superendividado não pode se ver numa situação de difícil
ou impossível resolução. A Lei busca a solução a ambas às partes, devedores e
credores, mas com olhar especial ao tratamento digno do devedor
superendividado.
Portanto, ao superendividado deve ser garantido o direito a uma negociação justa e mais igualitária possível, não devendo ficar sujeito a cobranças desrespeitosas, inconvenientes, ou até assediadoras, porque, como consumidores que são, a doutrina jurídica os entendem como vulneráveis ou hipervulneráveis da relação de consumo, ou seja, os fornecedores de produtos e serviços são considerados mais fortes (especialmente pelo poder econômico) e notadamente detém maior poder de negociação do que os superendividados, que sofrem, ainda, com a pressão psicológica decorrente das dívidas contraídas e de difícil pagamento.
Por fim, para que não reste
qualquer dúvida quanto ao cuidado e à aplicação desta Lei, até para que ninguém
venha a se utilizar dessa conceituação (superendividamento) da maneira que
melhor lhe aprouver, o artigo 54-A, § 1º, do CDC expressamente prevê o conceito de
superendividamento e traz, em sua redação, como princípio orientador e
regulamentador o princípio da boa-fé do superendividado, ou seja, há de se
observar e evidenciar a boa-fé do superendividado para fins dessa negociação
coletiva digna e tutelada pelo Estado.
Ricardo Melantonio - superintendente
Institucional do CIEE
Raquel Barros Araujo Trivelin - gerente
Jurídica e de Compliance do CIEE
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