Recente decisão de uma das cortes da Justiça do Trabalho em processo sobre vínculo empregatício entre uma plataforma de intermediação de transportes e o trabalhador a ela vinculado entendeu por não homologar um acordo entabulado entre as partes, dando continuidade ao processo para reverter a decisão anterior e acolher o pedido do autor (declarar o vínculo de emprego).
O fundamento utilizado foi de que “a finalidade
dessa estratégia de conciliação seletiva não é firmar acordos, mas impedir a
formação de jurisprudência reconhecendo os direitos trabalhistas aos
motoristas, ‘manipulando e obstruindo a pluralidade dos entendimentos
jurisdicionais sobre o tema’, o que seria um abuso do direito”. A partir desse
precedente, construído com respeitáveis argumentos, cabe aqui algumas
considerações.
O Juízo não pode estimular o conflito no ambiente
em que o acordo visou justamente a paz, por entender que seria mais importante
a formação de jurisprudência (a qual se filia, claro) do que a pacificação do
conflito. Até mesmo porque o Juiz é, ali, o Estado administrando o conflito,
não cabendo, portanto, ao Estado, intervir para forçar jurisprudência.
Ressalte-se que se trata de julgamento em uma
instância intermediária, podendo inclusive a decisão ser reformada por uma
instância superior - nesse caso, o Tribunal Superior do Trabalho, pois
entendimentos anteriores deste Tribunal indicam opinião diversa sobre esse
tema, no sentido de rejeitar o pedido do autor (o que certamente pode ser
levado em consideração pelo reclamante e seu advogado constituído). Nesse caso,
como ficará o reclamante que manifestou sua vontade livre e teve suas
expectativas econômicas frustradas? Lembrando que o próprio fundamento da
irrazoabilidade do valor do acordo deve ser demonstrado (por argumentos não só matemáticos).
Registre-se que a discussão sobre o vínculo
empregatício no caso do trabalhador de plataformas é hoje, possivelmente, a de
maior controvérsia em todo o Direito do Trabalho, não havendo qualquer abuso na
empresa realizar a sua gestão de riscos em matéria controvertida. O reconhecido
desequilíbrio da relação de trabalho não pode ser transferido ao processo em
que, assistido por advogado constituído e sem demonstração de vício, viu o
reclamante tendo a sua vontade desrespeitada ou, pior, a presunção de que o
profissional e a parte estariam agindo de má-fé ou conluio pela utilização de
expediente permitido e estimulado pela lei processual.
Fora tudo isso, desconsidera-se que pode haver
outros interesses, como a situação econômica do reclamante, que agora viu
frustrada sua expectativa. Independente, inclusive da estratégia processual,
existem motivos íntimos de ordem e necessidade pessoal da parte, como a sua
situação econômica atual, eventuais dívidas e necessidades pontuais, os quais
cabe somente a ele sopesar.
Nessa seara, faz-se necessário que se promova um
debate sobre o alcance do poder do Juiz no processo, afinal o Poder Judiciário
não pode passar por cima da vontade consciente das partes em compor para fazer
prevalecer seu interesse em formar jurisprudência para nenhum dos lados sobre
tema algum. Se reconhecermos este poder ao Juiz, amanhã poderá acontecer o
oposto: recusar homologação para fazer jurisprudência negativa. Se trata, como
dito, de formação de precedente arriscado na Justiça do Trabalho: a não
aceitação do acordo entre as partes, desconsiderando inclusive eventual
necessidade momentânea do autor ou estratégia processual com o objetivo de
construção de jurisprudência a qual se filia. Seja positiva ou negativa.
Não se desconsidera que a homologação do acordo
seja uma faculdade do Juiz (matéria há muito tempo pacificada pelo TST), mas o
impedimento à autocomposição com o intuito claro de construir jurisprudência em
matéria controversa. Verificada a intenção de compor, prudente se retire o
processo de pauta para discussão dos termos ou até valores, o que, aliás,
acontece diariamente em todos os Tribunais do Trabalho do Brasil (que possuem
até setores próprios para isso – os chamados “CEJUSC”s), mas jamais se pode
forçar julgamento.
O Direito do Trabalho é matéria de Direito Privado
e o processo atende a direito individual supostamente desrespeitado em uma
relação privada, na qual o autor exerceu a vontade própria para exercício de
seu interesse de natureza puramente patrimonial. O julgamento jamais pode ser
de ofício, desaparecido o interesse da parte tacitamente manifestado com o
acordo, desconsiderado pelo agente Estatal. O risco de proferir decisões
injustas e apaixonadas seria inevitável caso o juiz substituísse a vontade das
partes para fazer prevalecer a sua vontade de formação de jurisprudência.
André Gonçalves Zipperer - advogado, doutor em Direito, pesquisador da USP (Getrab), membro do IAB e conselheiro da Associação dos Advogados Trabalhistas do Paraná, é professor da pós-graduação em Direito do Trabalho da Universidade Positivo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário