As sociedades necessitam de liames relacionais. Ou têm-se regras que permitam o trânsito de ideias e comportamentos (algum contrato social), ou vive-se em desentendimento generalizado. Normas são emanações de poder; poder é coisa mundana. A ideia de que preceitos são vontades humanas, contudo, é muitíssimo nova.
A Tradição Ocidental, ou a História do
Ocidente, inclui a esperteza de quem, lá nos tempos de crendices, atribuiu os
códigos do mundo a uma voz que teria posto fogo em sarça e lavrado mandamentos
em pedra. A eficácia da manipulação de regras carimbadas como milagrosas
assenta-se na competência do seu intérprete.
O adivinho da vontade divina, ademais
dos recursos de adivinhação, necessita de meios terrenos objetivos para se
impor; de legitimação para permanecer; de controle de mentalidade para não ser
posto em dúvida; de um sistema de alienação do presente e de chantagens sobre o
futuro. O divino se consubstancia pelo mundano.
Valores praticados há mais de 2000 anos
produziram as regras basilares dos crentes ocidentais. Muitas das normas
garantidoras dos costumes que vivemos foram lançadas pelo poder militar de
Constantino (imperador romano católico, 306). Impuseram-se credos,
controlaram-se consciências, chantageou-se o imaginário popular.
Constantino, o 13º apóstolo, matou
sistematicamente quem não se converteu ao catolicismo; todas as crenças
concorrentes foram banidas; quem, mesmo na vida privada, não seguisse a “fé”
temia a danação, imediata e eterna. Por 1800 anos a coisa foi assim. Só a
Revolução Francesa (1789) garantiu a réstia de luz do Renascimento.
O Renascimento acendeu o Iluminismo. O
Positivismo deu condições à Ciência. Mas por 18 séculos (princípio do IV ao fim
do XVIII), ou se cumpriam os Dez Mandamentos, ou se morria. E morrer de “morte
matada”, no sentido de sofrer tortura, ser queimado, afogado, esfolado... O que
houvesse de horror. Já não cabem, todavia.
Mandamento 1: Amar a deus sobre todas
as coisas. Revisão: Amar a ti mesmo sobre todas as coisas. Comentário:
Dispensar a divindade cabotina não autoriza seres cabotino\a tu mesmo\a. Fazes
parte do mundo; se não amares o mundo, não te amarás.
Mandamento 2: Não invocar o santo nome
de deus em vão. Revisão: Não invoques criaturas imaginárias, é ato em vão.
Comentário: Como os fatos acontecem? Eles são tua vontade, as injunções
históricas, o aleatório. E a tua biologia. É a vida. Vai à luta.
Mandamento 3: Guardar domingos e festas
de guarda. Revisão: Procura descansar quando estiveres cansado\a. Faz isso em
homenagem a ti mesmo\a. Comentário: Se tiveres que trabalhar, faze-o em
qualquer dia sem qualquer constrangimento.
Mandamento 4: Honrar pai e mãe. Revisão:
Honorifica quem o mereça; repudia quem seja indigno. Comentário: A ascendência
não implica boa ou má qualidade moral. Os registros de violência doméstica
contra crianças recomendam cautela.
Mandamento 5: Não matar. Revisão: Só
mata em conformidade com as normas de legítima defesa. Comentário: Com efeito,
a vida é valor universalmente reverenciado. Não obstante deus ser o maior
assassino da História, o mandamento é válido.
Mandamento 6: Não pecar contra a
castidade. Revisão: Peca contra a castidade (um mal ela mesma) sempre que
tiveres oportunidade. Comentário: O sexo produz benefícios bioquímicos e
psicológicos em quem o pratica; melhor com habitualidade.
Mandamento 7: Não furtar. Revisão: Não
obstante os bens merecerem melhor distribuição, só furta em caso de
necessidade, nos termos da lei. Comentário: Apropriar-se do bem alheio por pura
cobiça não é coisa que se elogie. O mandamento conserva seu valor.
Mandamento 8: Não levantar falso
testemunho. Revisão: Evites fofocas e intrigas. Comentário: Mentiras raramente
são boa trilha, às vezes, contudo, são libertárias. Exemplo: a menina vigiada
afirma pernoite na casa da amiga, mas dorme com o namorado.
Mandamento 9: Não desejar a mulher
(original: a terra, o gado, a mulher) do próximo. Revisão: Sê sensível ao teu
desejo. Comentário: Esse preceito é um insulto à igualdade de gênero. Deseja
quem queiras desejar, sem qualquer restrição de sexo, ademais.
Mandamento 10. Não cobiçar as coisas
alheias. Revisão: Cobiça moderadamente. Comentário: O busílis está na inveja do
tipo destruidor da coisa do outro. A inveja de natureza “também quero” (cobiça)
é bastante salutar; ela move o mundo.
O corpo, incluída
sua dimensão mental, acolhe prazeres e\ou dores. Meus princípios me trazem
satisfação. Se não te agradam, cria os teus. Mas, cuidado, se não te fazes
recinto de deleites, postergas o céu, ou o inferno, talvez mais agradável, não
sei.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
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