Sou um observador e um curioso sobre o tema de crédito para a base
da pirâmide. A única certeza que consolidei ao longo dos últimos 15 anos foi a
de que ainda lidamos com dois planetas quando o foco é dar crédito para pobres.
Para que fique claro, eu me refiro a um crédito justo, sustentável e consciente
– não ao crédito com taxas de 15% ao mês ou mais, como o praticado pelos
cartões que se multiplicaram, na nossa economia, na última década.
São dois planetas porque o
paradigma, os códigos de linguagem, o conhecimento de campo, a vivência, a
cultura e, consequentemente, as ferramentas e os processos de quem deseja dar
crédito estão tão distantes e desalinhados do mundo dos que são excluídos deste
mercado, que para quem observa com atenção, a impressão é que, de fato, é uma
questão interplanetária. Um “mundo” olha para o outro e rotula: “eles são de
Marte”. As taxas “pornográficas” de algumas tentativas só evidenciam e
tangibilizam essa ignorância, essa distância, esse temor ao desconhecido (e
claro… para alguns, também a ganância). No planeta dos ofertantes de crédito,
essas taxas são tecnicamente e elegantemente justificadas pela teoria da
precificação do risco, dada a “assimetria de informação”.
Não vou me atrever a falar de
crédito produtivo para startups, nano e microempreendedores, porque sairemos de
uma abordagem interplanetária para uma abordagem intergaláctica. Estes “mundos”
estão anos-luz de distância quando o tema é resolver a lacuna de crédito
produtivo para este segmento produtivo.
Vivemos em um país no qual
aproximadamente 32% da população adulta não possui conta bancária. São 55
milhões de pessoas. Não tenho o dado, mas me pergunto quantos milhões serão os
que não acessam crédito? E indo mais adiante em termos de qualificação do crédito,
quantos milhões não acessam um crédito justo, sustentável e consciente? Neste
mesmo país, 75% do mercado de crédito está concentrado em quatro bancos que, ao
longo das últimas décadas, vêm demonstrando uma capacidade incrível de superar
ano a ano os seus lucros. Ora, pela cartilha clássica dos bancos, a do capital
financeiro, por que mudar? Está tudo dando certo! Seguir fazendo o que já
sabemos e bater recordes de lucratividade. Onde está a estrutura de incentivos
para mudar? Será que podemos ter expectativas de que serão os bancos que irão
liderar esta missão interplanetária?
Mas, algo significativo está
acontecendo neste mercado: o surgimento de empreendedores desbravadores e
inovadores que lideram iniciativas de missões muito interessantes com foco em
aproximar esse dois “mundos”; em inovar para aprender a conhecer mais, em
romper e estraçalhar premissas seculares, em postular que há formas de olhar
para esses “dois planetas”, enxergar uma “comunidade” e criar uma lógica de
negócios para facilitar a vida de muita gente excluída do mercado de serviços
financeiros.
Há um terceiro ator emergindo nos
últimos cinco anos. As fintechs, startups com base tecnológica com foco em
resolver esse gigantesco desafio. Só no Brasil, existem aproximadamente 160
empresas focadas neste tema. Uma pesquisa global recente da PwC estima que
essas startups podem tomar, em média, 23% dos negócios das instituições
financeiras nos próximos cinco anos.
Observar essas startups me remete a
algo que fiz em 2012/2013, quando liderava um projeto focado em empreendedores
da base da pirâmide. Durante duas semanas conheci mais de 50 empreendedores e
fiz uma experiência. Tirei uma quantia do meu próprio bolso e entreguei a três
nanoempreendedores informais, que atuavam no setor de alimentos, vendendo
espetos de churrasco, doces e afins na rua. O combinado foi que investiriam nos
negócios e me pagariam em parcelas de acordo com as possibilidades, em até 12
meses. Eles só tinham meu celular. Não fiz nenhuma análise de crédito clássica.
Não assinei contrato. Foi um acordo tácito. Eu estava disposto a correr esse
risco em troca do “aprendizado”. Foi o preço que me dispus a pagar para viver a
experiência de perto. De dois deles eu recebi tudo de volta em um horizonte de
18 meses. Não foi no prazo pactuado, mas foi 100% pago em parcelas variáveis e
em frequências diversas e mutáveis. O terceiro já me pagou 80% e até hoje me
liga ou manda mensagem dizendo que quitará o saldo este ano. Eu não cobrava,
não ligava, não fazia nada. Era uma experiência “passiva”. Só me interessavam
os dados e insights que poderiam emergir.
Que aprendizados se pode tirar
dessa experiência? O que se extrai da atitude dos empreendedores? Que aspectos
foram e são relevantes para que eles tomem a atitude de me dar satisfação? Há
como sistematizar um processo de tomada de decisão neste caso? Quais inputs
de dados e informações de fato têm significância aqui? Como esses dados e
informações podem ser capturados de modo a viabilizar um processo de avaliação
inteligente e assertivo? Como identificar padrões emergentes que orientem e
balizem uma lógica de negócios ganha-ganha? O que significa sair da zona de
conforto dos padrões clássicos de avaliação de risco e criarmos e inovarmos?
Como fazer parar de pé um modelo de negócio lastreado em novas premissas?
É para esse mundo e para estas
questões que essas fintechs estão olhando. Esse outro mundo que voa abaixo do
radar do mundo dos bancos. A tecnologia obviamente é uma enorme aliada. Mas por
trás desta tecnologia, certamente há espíritos empreendedores ousados,
indignados e insatisfeitos com o clássico. Flexibilidade, adaptabilidade,
ruptura de paradigmas, velocidade, criatividade, disrupção, ousadia… Como os
bancos, transatlânticos que são, padronizados, engessados, conservadores, sentados
nos lucros crescentes lidarão com esse mundo novo que emerge? Serão reativos ao
começarem a perder mercado, lutando para dificultar a vida de startups que
começarem a despontar? Serão proativos, propondo alianças ou fazendo aquisições
para internalizar boas soluções? Serão passivos, não fazendo nada e observando
o seu fim?
Recordo de uma cena do filme Senhor
dos Anéis, em que o anão Gimli – ao observar as forças do exército de
Sauron, diante de uma eminente batalha absolutamente desproporcional –, olha
para os companheiros Aragorn, Legolas e outros e declara com uma expressão
desafiadora: “Certeza de mortes. Pequenas chances de sucesso. O que estamos
esperando?” Quem assistiu ao filme, sabe o desfecho desta batalha.
A próxima fronteira a ser superada
neste setor não está nos escritórios refinados e no mundo dos derivativos, nem
na criação de novos produtos para mercados existentes do topo da pirâmide. Esta
fronteira está no campo, nas comunidades, nas favelas, nas mesas dos espaços de
coworking, nas incubadoras e aceleradoras, na criação de mercados para serviços
já existentes ou em formação. Nesta corrida interplanetária os atores estão se
posicionando. Ela não tem volta. Veremos nos próximos cinco a dez anos uma
ruptura no modelo clássico de avaliação de risco e crédito globalmente e,
espero, no nosso país.
Marco
Gorini - Economista, com MBA Executivo pela COPPEAD-UFRJ, Gorini possui 20
anos de experiência na área de modelagem de negócio, planejamento estratégico,
financeiro e organizacional. Há 15 anos atua na área de desenvolvimento de
projetos e negócios sociais, com destaque para o projeto no qual foi líder
planejador e coordenador, Tenda de Empreendedores – apoiado pelo
BID-Banco Internacional de Desenvolvimento e pelo Fundo Soberano de Combate à
Pobreza da República da Coreia. A iniciativa foi vencedora do G20 Challenge
2012 em inovação e negócios inclusivos, prêmio concedido pelos países do
G20 e pelo Banco Mundial como um dos 15 projetos mundiais com maior potencial
de impacto. O economista tem atuação em estruturação de operações financeiras
com bancos comerciais, de fomento e desenvolvimento, organismos multilaterais e
fundos de venture capital e private equities. Ao longo da sua
trajetória, liderou a estruturação de operações de aproximadamente R$ 750
milhões entre dívida e equity. Em parceria com Haroldo Torres, Marco Gorini
está lançando o livro Captação de Recursos para Startups e Empresas de
Impacto”.
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