Dor crônica é decorrente de lesão no sistema nervoso e afeta entre 3% e 15% da população. Atualmente, as únicas opções terapêuticas são medicamentos desenvolvidos para outras condições, como epilepsia e depressão (foto: Freepik)
A dor neuropática é um tipo de dor crônica decorrente de lesão no
sistema nervoso provocada, principalmente, por doenças metabólicas, como
diabetes e artrite, ou por efeitos colaterais de alguns tipos de quimioterapia.
Estima-se que afete entre 3% e 15% da população, dependendo do país, e não há
medicamentos específicos para tratá-la – as drogas usadas atualmente foram
desenvolvidas para outras condições, como epilepsia e depressão.
Agora,
após mais de uma década de estudos, um grupo de cientistas brasileiros
conseguiu desvendar um mecanismo ligado ao desenvolvimento desse tipo de dor
crônica. Com isso, abriu uma nova fase da pesquisa, na qual será possível
buscar drogas capazes de atuar nessa via metabólica e traçar um caminho para
terapias dirigidas.
O estudo
revelou o papel das células dendríticas (que fazem parte do sistema imune)
presentes nas membranas que recobrem o sistema nervoso central (as meninges) no
desenvolvimento da dor neuropática por meio do aumento da via metabólica de
quinurenina.
Responsável
pelo metabolismo do triptofano – aminoácido essencial na produção de vitamina
B3 –, essa via tem importante função em diversos processos fisiológicos do
organismo humano, como a organização da resposta imunológica. Outros trabalhos
já ligaram o aumento da produção de quinurenina ao desenvolvimento de sintomas
depressivos e distúrbios psiquiátricos, por exemplo.
Na
pesquisa, os cientistas descobriram que a dor neuropática é anulada quando a
via metabólica de quinurenina iniciada por uma enzima chamada indoleamina
2,3-dioxigenase (IDO1, na sigla em inglês) é abalada geneticamente ou por meio
de uma droga.
“Foi um trabalho muito longo porque sempre buscamos aprofundar cada vez
mais para entender melhor os mecanismos que estavam por trás disso. O estudo
exigiu colaborações nacionais e internacionais importantes, como a do professor
Andrew Mellor [da Georgia Regents University], um dos maiores especialistas em
IDO no mundo. Com os resultados obtidos, abrimos essa perspectiva de
desenvolvimento de novos compostos para bloquear essa via. Acreditamos que
inibidores dela possam ter um papel importante no controle desse tipo de dor”,
diz à Agência FAPESP Thiago Mattar Cunha,
professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo (FMRP-USP) e orientador do estudo, cujo primeiro autor é Alexandre Maganin.
A pesquisa foi publicada na revista
científica The Journal of Clinical Investigation e
recebeu apoio da FAPESP por meio de um Projeto Temático e
do Centro de Pesquisa em Doenças
Inflamatórias (CRID)
– um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID)
da FAPESP sediado na FMRP-USP. Também participaram pesquisadores da Faculdade
de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP-USP) e da University of
Texas Health Science Center.
Segundo
Mattar Cunha, a descoberta abriu uma nova área de trabalho, ainda não
explorada, focada em analisar o papel das meninges no contexto de dor.
Caminhos
O
envolvimento da via de quinureninas (cuja formação depende de algumas enzimas,
principalmente IDO1) com a dor já havia sido demonstrado. Como IDO1 é induzida
durante processos patológicos, principalmente inflamatórios, por citocinas
pró-inflamatórias, os pesquisadores partiram da hipótese de que essa
neuroinflamação ocorrida durante a indução da dor neuropática pudesse aumentar
IDO, elevando os níveis desses metabólitos neurotóxicos ou neuroestimulantes.
“Utilizamos
várias ferramentas para provar e elucidar se realmente essas enzimas e esses
produtos tinham um papel nesse tipo de dor. Usamos modelos em camundongos e
demonstramos que animais deficientes para essas enzimas ou inibidores delas são
capazes de reduzir a dor neuropática. A partir daí, buscamos entender o
mecanismo”, detalha Mattar Cunha.
O grupo
utilizou modelo de dor neuropática induzida por lesão do nervo periférico, além
da ativação na medula espinhal de células microgliais (um tipo de célula do
sistema nervoso central que atua nas respostas imunológicas). Na medula, a
quinurenina foi metabolizada por astrócitos (células nervosas que dão suporte
aos neurônios) e também houve ativação de receptor glutamatérgico.
“Mostramos
pela primeira vez que, quando há uma lesão de nervos periféricos, ocorre uma
infiltração de células imunes nas meninges que recobrem a medula espinhal e os
gânglios das raízes dorsais, que produzem mediadores que vão causar ou manter a
hipersensibilidade dolorosa. Nesse processo há produção de IDO1 e seus
metabólitos. Demonstramos que esses metabólicos vêm principalmente de células
dendríticas, presentes nas meninges, causando hipersensibilidade e amplificando
a via glutamatérgica, cujos receptores têm um papel importante na dor crônica”,
detalha o pesquisador.
De acordo
com Mattar Cunha, apesar de o estudo ter sido realizado com modelos de dor
causada por trauma físico (esmagamento ou rompimento de ligadura), o mecanismo
é similar em outras condições neuropáticas, como doenças infecciosas provocadas
por vírus como o HIV.
O grupo de
pesquisadores busca agora parceria com farmacêuticas ou outros centros para
colaboração na etapa de estudos de moléculas ou drogas que possam atuar no
mecanismo e inibir a dor neuropática.
No final do ano passado, artigo publicado na
revista Nature Neuroscience por cientistas do CRID,
incluindo Mattar Cunha, e pesquisadores da Universidade Harvard (Estados
Unidos) mostrou que um componente não letal da toxina antraz tem alto poder
analgésico e pode atuar diretamente nos neurônios sinalizadores da dor,
incluindo a neuropática.
A toxina antraz é derivada de bactérias Bacillus
anthracis, que desenvolvem esporos quando submetidas a ambientes
hostis que podem causar úlceras na pele e problemas respiratórios em indivíduos
expostos, levando à morte em poucas horas. A pesquisa concluiu que, por se
ligar a um receptor desses neurônios, esse pedaço do antraz pode ser usado como
um carreador capaz de levar outras substâncias analgésicas até as células
neuronais (leia mais em: agencia.fapesp.br/37820/).
O artigo Meningeal dendritic cells drive neuropathic
pain through elevation of the kynurenine metabolic pathway in mice pode
ser lido em: www.jci.org/articles/view/153805.
Agência FAPESP
Estudo revela mecanismo envolvido na dor neuropática e favorece a busca por tratamento específico | AGÊNCIA FAPESP