Entidades como o Universo Coletivo AME questionam há anos o Ministério da Saúde: doenças têm tratamento, mas carecem de diagnóstico precoce do SUS
Nesta terça-feira (06), foi celebrado o Dia
Nacional do Teste do Pezinho, um dos exames mais tradicionais e importantes
para a saúde dos recém-nascidos. O procedimento identifica seis doenças
potencialmente nocivas à saúde das crianças, como fenilcetonúria,
hipotireoidismo congênito, fibrose cística, anemia falciforme, hiperplasia
adrenal congênita e deficiência de biotinidase. Porém, o teste amplamente
aplicado em território nacional segue não contemplando doenças raras, que interferem
na qualidade e expectativa de vida das crianças e que preenchem os critérios de
inclusão da triagem, uma vez que já possuem tratamento. É o que especialistas e
associações de famílias que convivem em situações semelhantes debatem há muitos
anos com autoridades governamentais.
Uma das vitórias da sociedade em torno do
tema aconteceu em 2021, quando foi sancionada a Lei nº 14.154, que amplia para
mais de 50 o número de tipos de doenças raras detectadas pela triagem neonatal
realizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Considerando a complexidade de
incorporação das “novas” doenças, o Ministério da Saúde propôs um escalonamento
em cinco fases de implementação. Apesar do desafio ser grande aos olhos do
governo brasileiro, famílias de crianças com essas condições reclamam do
pouquíssimo avanço desde a sanção.
Há quatro anos o
Universo Coletivo AME procura dar apoio a famílias que convivem com a Atrofia
Muscular Espinhal (AME), doença que se não diagnosticada nos primeiros dias de
vida, compromete o funcionamento do sistema nervoso central e dos músculos de
forma acelerada. Além da rede de apoio, ela é uma das centenas de entidades que
dialogam com o governo pedindo celeridade no cumprimento da Lei nº 14.154, que
não estipula cronograma nem planejamento detalhado para o andamento das cinco
etapas.
O último progresso a respeito do tema
aconteceu em agosto do ano passado, durante audiência pública na Câmara dos
Deputados na qual integrantes do Universo Coletivo AME, maior coalizão em prol
da causa no país, conseguiram que a doença passasse da quinta e última etapa
para a quarta. Porém, em termos práticos nada mudou, pois o Ministério da Saúde
segue sem estabelecer um cronograma de implementação das fases.
Desafios
políticos e de investimento
Mudanças significativas nos últimos cinco
anos fizeram com que a AME, considerada uma urgência pediátrica e maior fator
genético de mortalidade infantil, enfim, preenchesse os critérios de inclusão
na triagem neonatal. Com a incorporação de medicamentos promissores no SUS,
cuja administração precoce pode mudar o curso da enfermidade, o que falta para
incluir a AME no Teste do Pezinho?
Assim como a AME, outras doenças raras
contempladas pela Lei nº 14.154 sofrem do mesmo paradigma: tratamento não
significa acesso a um diagnóstico precoce na rede pública. Vontade política,
investimento em equipamentos, treinamento de pessoal e centros de referência
qualificados são alguns dos desafios atuais. Hoje, na
maioria dos estados do país, só existe o Teste do Pezinho tradicional. “É um
teste realizado através de análise bioquímica. Todos os centros de referência
estão treinados e equipados para este determinado tipo de análise. No caso da
AME, é necessária uma análise genética. Estamos falando de equipamentos
totalmente diferentes, que são os sequenciadores de DNA. Mas não basta investir
no equipamento; é preciso treinar pessoal para a sua correta utilização”,
explica Salmo Raskin, médico especialista em genética e pediatria e diretor do
Centro de Aconselhamento e Laboratório Genetika.
Além da análise genética, a AME necessita
ainda da realização do teste confirmatório cujo padrão ouro hoje é o MLPA (Multiplex
Ligation-dependent Probe Amplification).
Sendo o Brasil um país de dimensões
continentais, a carência de centros de referência qualificados para receber os
pacientes de diferentes doenças é um imenso gargalo, já que a triagem neonatal
não é somente o Teste do Pezinho e sim um programa que vai desde a coleta do
sangue até o encaminhamento e posterior tratamento destes pacientes. Soma-se a
isso a escassez de geneticistas e neurologistas, desconhecimento e falta de
alinhamento entre gestores públicos, burocracia regulatória e necessidade de
repasse de verbas federais.
Na audiência pública de agosto de 2022,
Tânia Bachega, presidente da Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal e Erros
Inatos do Metabolismo, apontou ainda outro desafio de ordem política: sendo a
triagem tripartite, gestores com ampla rotatividade não têm a devida noção da
sua importância.
Alternativas
No entanto, para o geneticista Salmo Raskin
há alternativas capazes de transpor os atuais obstáculos. Tanto a análise
genética e o teste confirmatório da AME podem ser realizados pelo mesmo papel
filtro já fornecido pelo SUS para a triagem, na mesma amostra que é colhida.
“Esta amostra poderia ser enviada pelo correio para um centro de referência que
tenha um laboratório de genética. Poderíamos ter quatro ou cinco centros de
referência, um em cada região do país, responsáveis por esta análise”, pondera
o médico, exemplificando que a análise do Teste do Pezinho em Santa Catarina é
hoje feita no Paraná.
“Os obstáculos existem, inclusive os
logísticos, mas há meios para fazer as coisas acontecerem. O que falta, muitas
vezes, é vontade política e investimento”, frisa Fátima Braga, mãe de Lucas, 21
anos, que tem AME I.
Fátima é uma das cinco mulheres à frente do
Universo Coletivo AME. O grupo atua, sobretudo, em ações voltadas para
políticas públicas, e sua principal bandeira tem sido a da inclusão da doença
no programa de triagem.
Quando se fala em investimento, para
Adriane Loper, também membro do Coletivo, a matemática feita pelo Ministério da
Saúde é equivocada. Um estudo realizado na Austrália, com recém-nascidos
diagnosticados através da triagem e devidamente tratados, constatou que
diminuíram em sete vezes a evolução das comorbidades, ventilação e suporte para
alimentação. “Essas terapias são custosas para o sistema de saúde, e crianças
com AME necessitam de tratamentos multidisciplinares”, observa.
Quem
tem AME tem pressa
O tempo é um fator crucial na evolução da
AME, explica Salmo Raskin. “A criança que tem a doença já nasce com a perda de
alguns neurônios motores e isso só vai progredindo, tendendo a impactos de
difícil reversão. Portanto, quanto antes é realizado o diagnóstico, maiores são
as chances de sucesso e qualidade de vida dos pacientes”, argumenta.
De acordo com dados do Instituto Nacional
da Atrofia Muscular Espinhal (Iname), 46% dos bebês são diagnosticados após
visitarem quatro ou mais profissionais de saúde. E apesar de um avanço
significativo desde 2019, 45% dos bebês com AME ainda não são diagnosticados.
Quando olhamos para os que possuem a forma mais severa da doença, a AME I, em
mais da metade dos casos, a descoberta acontece somente depois dos seis meses
de idade. “Já há comprovação científica da boa eficácia do tratamento iniciado
em até seis meses, preferencialmente em um recém-nascido pré-sintomático”,
destaca o geneticista.
O médico foi responsável por descobrir a
doença em Fernando, filho de Adriane, em uma época em que não havia tratamentos
capazes de deter a evolução da AME. Após passar 9 anos na UTI, o menino acabou
falecendo. “Essas histórias não precisam se repetir. O que teremos diante da
inclusão da AME no teste é a chance de transformar a vida de futuras gerações”,
ressalta.
Sobre
o Universo Coletivo AME
O
Universo Coletivo AME é a maior coalizão no Brasil pela causa da Atrofia
Muscular Espinhal (AME), doença genética rara que, se não diagnosticada nos
primeiros dias de vida, compromete o funcionamento do sistema nervoso motor e
dos músculos de forma acelerada. O país tem cerca de 300 novos casos por ano da
doença, que é hoje a maior causa genética de mortalidade infantil. O Coletivo
foi fundado em 2019 pela união de cinco instituições que atuam há mais de 20
anos em diferentes regiões do país e são lideradas por mães que vivenciam a AME
no dia a dia: Donem (Associação de Doenças Neuromusculares), Instituto Viva
Íris, Iname (Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal), Instituto
Fernando e Abrame (Associação Brasileira de Amiotrofia Espinhal). O grupo atua
no acolhimento, educação, conscientização e, principalmente, em ações voltadas
para políticas públicas. Um dos objetivos é acelerar a cobertura da AME no
Teste do Pezinho, visando o diagnóstico precoce e para garantir o acesso de
todos os pacientes aos medicamentos disponíveis no SUS.
Site: https://universocoletivoame.com.br/
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