Não é novidade para ninguém: o Estado brasileiro
não cuida bem de seus futuros homens e mulheres. Ainda assim, calejado de tanto
abrir o jornal ou ligar a televisão e encontrar uma torrente de notícias de
violência contra a nossa juventude, me espantei diante dos números apresentados
pelo novo boletim epidemiológico do Ministério da Saúde (MS).
O documento integra a campanha “Faça Bonito.
Projeta nossas Crianças e Adolescentes”, iniciativa conjunta do Ministério dos
Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) com a sociedade civil para proteger e promover
os direitos da população infantojuvenil. Divulgado em ao término de maio, para
destacar o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes, é um filme de terror.
Região
do país, sexo das vítimas e dos agressores, tipo de agressão e local de
ocorrência são algumas das características levadas em conta para embasar o
estudo, que calcula 202.948 casos de violência sexual contra brasileiros e
brasileiras de 0 a 19 anos – quase 80 por dia. Destes, 41% dos casos (83.571)
são praticados contra crianças (0 a 9 anos); 58,8% (119.377), contra
adolescentes (10 a 19 anos).
Ao longo dos sete anos analisados, as
notificações cresceram exponencialmente. Os números registrados em 2021 são os
maiores dentro do período. Os agressores são predominantemente homens,
responsáveis por mais de 81% dos casos contra crianças e 86% dos casos contra
adolescentes.
Em 76,9% das vezes, as vítimas são meninas;
em 92,7%, moças (entretanto, o documento alerta que pode haver um sub-registro
dos casos entre meninos, em virtude de estereótipos de gênero e da crença de
que o sexo masculino não vivencia estupro, assédio ou exploração).
Mais chocante ainda é que o local com maior
incidência de crimes é a própria casa dos pequenos, e familiares e amigos/conhecidos,
aquelas acima de qualquer suspeita, são os principais agressores. Nunca fez
tanto sentido o ditado que sugere que “o inimigo mora ao lado”.
As estatísticas trazem à recordação uma
notícia recente. No primeiro dia de junho, em Foz do Iguaçu, Paraná, um
homem foi preso sob suspeita de abusar sexualmente de sua enteada, de 13 anos,
desde que ela tinha 9. Isso porque a própria vítima o denunciou através do
WhatsApp da Delegacia do Adolescente, divulgado durante uma palestra sobre
abuso sexual realizada em sua escola. Não raramente pululam relatos de jovens
que encontram no ambiente de ensino, por se sentirem seguros ali, uma
oportunidade de pedir socorro.
É
inexplicável que os setores mais conservadores da nossa sociedade se oponham à
educação sexual, fazendo do tema um tabu. Ora, é uma questão de saúde pública.
Educar a infância e a juventude está longe de significar guiá-las rumo ao sexo
precoce.
Ao contrário, é uma maneira de informar sobre
doenças sexualmente transmissíveis, gravidez na adolescência e mostrar a
importância de estabelecer limites. Assim, os pequenos poderão distinguir entre
interações saudáveis e agressões de “titios” e “titias”. Fechar os olhos e
optar por não instruir apenas perpetua a violência.
Também
é fundamental divulgar os canais de denúncias e descomplicá-los, para que
qualquer um, inclusive as vítimas de pouca idade, consiga reportar crimes, além
de unir esferas e profissionais diversos para proteger crianças e adolescentes,
de assistentes sociais a educadores, de médicos a policiais.
Merece
todo o destaque, nesse contexto, a campanha “Infância, eu Abraço”, idealizada
pela Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSPS) e pelo Instituto Olinto
Marques (IOPM), apoiada pela Sociedade Brasileira de Clínica Médica. A ideia,
uma semana de conscientização e mobilização em prol do desenvolvimento saudável
e de prevenção e combate à violência contra crianças e adolescentes, garantida
pela lei paulistana 17.738/2022, deveria ser copiada país afora.
Entre 12 e 16 de junho, São Paulo receberá
atividades que incentivam o conhecimento, o que inclui a compreensão dos canais
de interlocução e o reconhecimento de situações de maus-tratos e negligência.
No
próximo dia 13, por exemplo, no Terminal da EMTU – Metrô Jabaquara, das 7h às
13h, especialistas falarão sobre os riscos que se escondem por trás das
plataformas digitais e fazem mais vítimas a cada dia, com cyberbullying,
pedofilia, extorsão. Crianças, pais e responsáveis serão recebidos no local com
muita alegria, brincadeiras e artistas circenses, mas seriedade de informaçoes.
A programação completa, como se tornar um
multiplicador da campanha e conteúdos bastante úteis podem ser conferidas no
site do IOPM. Indico a todos, se puderem, que compareçam. Afinal, os adultos de
amanhã precisam de aliados hoje.
E
é sempre bom lembrar: para fazer uma denúncia, disque 100.
Antonio Carlos Lopes - presidente da
Sociedade Brasileira de Clínica Médica
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