Estamos iniciando mais um ano, com a expectativa de
nos reerguermos dos danos profusos e calamitosos advindos da pandemia de
coronavírus Sars-COV-2, que causou uma crise sanitária, social e econômica sem
precedentes na história do Brasil. Podemos dizer que se instalou um ambiente
propício para meditarmos sobre o futuro, ponderarmos como evitar os erros do
passado e, diante destas e de novas conjecturas, como criarmos um alicerce de
esperança para a humanidade.
Penso que não basta ao operador do direito (o que
inclui advogados, magistrados, defensores, promotores, assessores, entre outras
tantas funções cujo ofício envolve a dedicação ao conhecimento jurídico) ter
uma visão míope, seletiva, voltada somente ao contexto puramente jurídico (como
uma visão kelseniana). Na verdade, há uma inconteste relação do direito com a
realidade socioeconômica que não pode ser ignorada pela ciência jurídica.
Ouso dizer que, no Direito do Trabalho, a seguinte
máxima de Radbruch encontra certa aquiescência pelos tribunais, particularmente
por meio do fenômeno do ativismo judicial: “onde a justiça sequer é perseguida,
onde a igualdade, que constitui o núcleo da justiça, é conscientemente negada
pelas normas de direito positivo, a lei não apenas é direito injusto, mas em
geral carece também de juridicidade”. É que, no Direito do Trabalho, impera o
princípio protetor, que confere garantias para os interesses dos trabalhadores
não serem fagocitados pelos interesses dos empregadores. Não são incomuns no
Direito do Trabalho situações em que uma norma considerada ineficaz deixa de
ser aplicada em prol da proteção à parte hipossuficiente, na grande maioria das
vezes, o trabalhador.
Como advogado trabalhista, que atua tanto para
trabalhador quanto para empregador, me debruço principalmente sobre as leis que
regem as relações de trabalho. A natureza do Estado de Direito, aquele dedicado
à defesa e aplicação dos direitos fundamentais, exige a atenção dos operadores
do direito ao que foi legislado, não para servir como fonte exclusiva, mas para
delinear as diretrizes jurídicas. Por sua vez, as diretrizes jurídicas devem se
submeter aos fundamentos daquele Estado (no caso brasileiro, aqueles contidos
no art. 1º da Constituição Federal). Portanto, quando o Estado de Direito,
ainda mais aquele que segue o modelo romano-germânico, se abstém do dever de
legislar ou de cumprir com sua função de defesa e aplicação dos direitos
fundamentais, causa uma espécie de anarquia jurídica, que contribui
essencialmente para a insegurança jurídica. É importantíssimo frisar que não
estamos falando de uma lacuna ideológica. Queremos nos referir a normas que
confiram eficácia à matriz jurídica, que se prestem ao dever de completude e
necessidade de coerência do ordenamento jurídico.
Sem adentrarmos aos motivos, a crise socioeconômica
causada pela pandemia exigia uma solução jurídica direcionada, que se atentasse
às particularidades de um determinado subsistema social. Decisões genéricas ou
que não precedessem de um estudo preparatório poderiam piorar ainda mais as mazelas.
Pois bem, infelizmente isso aconteceu com as
relações de trabalho. Malgrado fossem publicados (com atraso) alguns diplomas
normativos que cuidassem de parte das adversidades vindas com a pandemia (a
título de exemplo, as Medidas Provisórias nº 927 e 936 e a Lei nº 14.151, todas
de 2021), ainda persistiram notórias lacunas e problemas de integração. Os
trabalhadores, empregadores e sindicatos foram postos em um pálio de incerteza
e sem esperança de conseguirem a atenção do legislador (afinal, estamos vivenciando
um Estado neoliberal, cuja abstenção se propaga de maneira incurável, como uma
doença crônica).
Daí voltamos à questão da insegurança jurídica em
um Estado de Direito. Estas falhas de lacunas e problemas de integração
poderiam ser resolvidas de duas maneiras: ou mediante uma postura passiva dos
operadores do direito para se submeterem à positivação de textos incoerentes ou
recorrer à base princípio lógica para sanar tais inaptidões normativas.
Contudo, neste momento de descalabro
socioeconômico, de urgência de tomadas de algumas decisões, muitos que
recorreram ao estudo dos princípios acabaram frustrados. A visão que muitos
operadores de direito possuem é de uma Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)
obsoleta, que já possuía pontos desatualizados e remendados, em parte destruída
conceitualmente pela deletéria Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017). Isto
atordoou o estudo dos princípios e trouxe debates desconstrutivos para resolver
dilemas.
Sim... aquela CLT que, por muitas décadas, serviu,
ainda que com alguns contratempos e erros, para reger as relações de trabalho,
sob o prisma da justiça social e do princípio protetor, já estava desvigorada e
anêmica. É bem verdade que a investida neoliberal de 2017, que visava desmontar
os fundamentos do Estado do Bem-Estar Social brasileiro, não conseguiu atingir
o plano constitucional. Sem embargo, logrou em atacar, com ímpeto jamais visto,
a seara infraconstitucional, mormente a CLT. E o carro de guerra neoliberal
foi, justamente, a Reforma Trabalhista. Como consequência desta hostilidade
ideológica, a principal lei trabalhista passou por uma espécie de guerra
interna, com alguns setores dominados pelo espírito protecionista e, outros,
pelo contratualista, uma verdadeira baderna que não se admite em um texto legal.
Ora, por mais que as normas infraconstitucionais
estejam submetidas aos cânones das normas constitucionais, é fato que essa
disfunção normativa causou sérios prejuízos de difícil reparação. É o caso da
possibilidade de condenação a honorários sucumbenciais de quem fosse
beneficiário da Justiça Gratuita (art. 790-B, §4º e 791-A, §4º, ambos da CLT),
flagrante intempérie ao direito fundamental do acesso à justiça aos
hipossuficientes, contida no artigo 5º, inciso LXXIV, da Lei Maior, que somente
foi resolvida recentemente na ADIN 5.766, no final de 2021. Ou seja, durou
cerca de quatro anos para remediar dois dispositivos legais que, além de
inconstitucionais, feriam de morte a missão do Processo do Trabalho, que é
facilitar o acesso do trabalhador ao Poder Judiciário – um dispositivo
cujo mens legislator e era, evidentemente, desencorajar o
obreiro a buscar os seus direitos, ainda que isto custasse o próprio acesso à
justiça.
A flexibilização e desregulamentação produzida pela
Reforma Trabalhista também trouxe princípios ínsitos do neoliberalismo. A
exemplo disto, o famoso “negociado sobre o legislado”, entusiasticamente
talhado pelo legislador reformista no artigo 611-A da CLT. São situações
diversas onde, apesar do arranjo legislativo, há uma fabricada supremacia de
convenção ou acordo coletivo. Com efeito, esta concepção abalou ainda mais a
segurança jurídica e desencadeou conflitos internos no ordenamento
jurídico-trabalhista.
Enfim, após esse desastre econômico carregado pela
pandemia, existe um iminente risco de precarização e marginalização em massa do
trabalho digno. Já estamos presenciando um movimento constante de contratações
irregulares, sonegações de direitos e fraudes. Infelizmente, isso é inevitável,
pois, o capitalismo não poupa quem não se adequa às suas regras.
Lamentavelmente, a recente triste guerra na
Ucrânia, com todos os seus corolários negativos aos países envolvidos e ao
cenário mundial, deve agravar ainda mais o caos da pandemia. Sendo assim, como
o Brasil, no âmbito de seus entes da federação, que já passa por fortes atritos
políticos e ideológicos, mal gerido, possui uma economia amplamente globalizada
e não é autossuficiente em muitos setores estratégicos, há uma evidente
potencialização da ruína socioeconômica. A curto prazo a mão-de-obra sofrerá
com tendências de barateamento, o que levará à insuficiência para custear vida
digna de muitos trabalhadores e suas famílias. Por outro lado, muitos
empregadores não conseguirão suportar os altos gastos para se manterem, correndo
preocupante risco de falência.
Este é o momento de defendermos um Direito do
Trabalho mais atuante e um Processo do Trabalho mais justo. Veja bem, não
estamos aqui condenando o mercado ou o capitalismo em si, mas precisamos
reconhecer que seu metabolismo exige de uma nação adaptações drásticas para não
escantear aquela porção da sociedade que é mais frágil. Somente o Estado de
Direito, mesmo com todas as suas imperfeições, pode positivar leis e trazer
segurança jurídica, cumprindo sua missão de zelar pelos direitos fundamentais.
Nessa altura, precisamos fazer estas e outras
elucubrações para avaliar se manter essa política neoliberal e semi-agorista é
o que vai garantir os direitos fundamentais do trabalhador e eficiência dos
princípios trabalhistas, se vai almejar a justiça social. Negar a
hipossuficiência em vários espectros do trabalhador, colocá-lo “quase” em
pé-de-igualdade com o empregador e tirar as garantias legais é o mesmo que ordenarão
mar a direção das águas. Citando uma frase de Jorge Luiz Souto Maior[1], muito pertinente para
esta discussão: “Não é apenas de sensibilidade e compaixão que se fala,
portanto. É de obrigações jurídicas sociais a todos impostas, sobretudo, em
momento de efetiva crise humanitária.”
Dr. Rubens Luiz
Schmidt Rodrigues Massaro - advogado e professor
Epifania Multimídia
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