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terça-feira, 4 de janeiro de 2022

PECADORA DE MERA VONTADE

– Espantar? Espanto é medo, mas também é admiração, rsrs. Gosto. Estou seguro de que nossas conversas te afetam, te causam emoções... Não conversamos com indiferença.


– Emoções!? São provocações que me assustam.


– Hum... Eu diria: te emocionas, e tuas emoções te assustam.


– Ah! boa sorte minha, sou sensata.


– Ou te perderias?


– Perder-me? Não... Não me perderia.


– Não mesmo? Precisaste do socorro da tua sensatez... Isso talvez te tenha assustado, ou espantado, como preferes.


– Jamais! Se não o quero, podes ter certeza, não me perco...


– Bem... Quem tem certeza sobre seus quereres não levanta a hipótese do perder-se.


– Fui eu? Bem, é uma proposição, e eu já a trago negativa.


– Argumentos inteligentes, claro. Mas uma hipótese já pressuposta negativa é uma proibição a priori, é uma recusa antecipada da possibilidade. Não vês? Se recusas a possibilidade, então a possibilidade te ocorreu. Essa possibilidade, antes mesmo de admiti-la, tu a proibiste a ti mesma.


– Manobras argumentativas... Não vou cair nisso.


– Cair? Te sentes à beira de uma queda? Talvez na tentação de uma queda...


– Modo de dizer, rsrs.


– Modo de dizer, rs... Não sentes e saboreias a possibilidade da queda? Não tens vertigens à beira dos teus desejos contidos de queda?


– Eu sou tranquila, tenho uma vida tranquila... E dela não desejo me jogar em nada.


– Sim... Suponho que sim. Mas... Olha, vidas tranquilas são aliadas da proibição de nossos desejos. E quem falou em se jogar?


– É... Tomarei mais atenção às palavras, já que as pegas... Bem, sim, eu disse. Mas, olha, quero significar: estou na vida que levo por vontade de levá-la.


– Vontade! Vontade é um imperativo nosso sobre nós mesmos. Pessoas inteligentes... Seus superegos fortes constroem argumentos fortes para conter desejos fortes. Conter nunca é suprimir, contudo, rsrs.


– Desejos! Há um tanto de desculpa nisso. Acabam usados como licença para atender egoísmos. Já que apelos intelectuais te sensibilizam, me faço acompanhar de Kant, falo em egoísmo como submissão unicamente ao meu interesse, em desconsideração aos meus compromissos morais. Há outros valores em questão; não quero magoar pessoas.


– Sei! A dedicada servidão à moral, aos compromissos. Compromissos que nem contrataste. Olha, defesa de normas morais ou de compromissos sociais é sempre uma ética de interesses. Manter posições é manter interesses.


– Assim seja... Não vejo problemas em que interesses sejam defendidos. Só não quero viver um puro e simples egoísmo. Há interesses outros na minha situação de vida... Há outras vontades além das minhas.


– Acredito nisso de jeito nenhum. O que chamas de tua situação de vida eu chamo de teus interesses. Os outros interesses que referes são pretextos para sustentar os teus interesses. E te digo: reprimir desejos por conveniências; haverá custos.


– Isso é medíocre. Seres rasos é que se entregam a caprichos.


– Apelo a Nietzsche, tão do teu gosto: o egoísmo é sentimento de pessoa superior, daquela capaz de compreender o mundo do ponto de vista exclusivo de seu próprio interesse.


– Não nego Nietzsche... Até posso compreender o mundo a partir dos meus exclusivos interesses, mas não posso vivê-lo. Ninguém poderia fazê-lo.


– Lá isso é verdade. Tenho mesmo que negociar com o mundo; mas não com esse mundinho para o qual muita gente dá a vida em troca de mediocridade. Esse mundinho confortavelzinho oferece convenienciazinhas e consegue reprimir desejos enormes. Esse mundinho...


– Se não nos cuidamos, nos corrompe a grandeza possível da existência? Bem sei disso... Entretanto, existência é relação. Não quero uma liberdade egoísta e desrespeitosa, que atropele o próximo.


– Relação nenhuma pode me pedir a minha anulação. Nem sei se algum próximo se te declarou atropelado. A coisa és tu contigo mesma. Convertes moral e conveniências em egoísmo excludente. Não, não é verdade que magnanimamente recusas as vontades de teu ego. Desculpa, mas estás é a te curvar à segurança dos usos e costumes.


– Deixa eu ficar calma, tranquila, na minha... Tenho os prazeres da rotina, porém os tenho.


– Rotina, gosto dela... A rotina nos acalma... Previsibilidade... Sem rotina a vida seria caótica. Certo. Mas duvido de que alguém satisfaça desejo na mesmice. E sim, claro, te deixo na tua calma, afinal, é coisa tua. Um dia, porém, terás que te dar explicações.


– É... Tens gosto em me provocar.


– Gostas de ser provocada, para provares o gosto de não cair em tentação? Soberba elevação controladora sobre si própria, não? Sabes qual o prazer do pecador no teu modo de ver o egoísmo?


– Aposto que me vais dizê-lo.


– Rsrs, só se me pedires...


– Um homem vítima de todos e cada um dos seus desejos... Um homem capturado por si mesmo.


– Tenho vontade de dizê-lo. E tu? Tu a tens de sabê-lo?


– Fica pela tua vontade.


– Mas somos dois.


– Não me curvo à minha vontade...


– Ah!, rsrs, com isso a declaras. Digo, pois: tu, pecadora egoísta, aprecias, sem degustá-las, as tuas vontades. Desejas, conversas sobre desejos, mas, egoísta de ti para contigo, não pecas. Mas, olha, não pecar é grave pecado.


– Rsrs, talvez... Se acontecer, vou, dou-me. Mas, sabes? Eu peco. Peco saboreando o desejo desejado.



 

Léo Rosa de Andrade

Doutor em Direito pela UFSC.

Psicanalista e Jornalista.

 

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