Há pouco tempo,
mal conseguindo andar eretos, estávamos nos dispersando pelas savanas
africanas, evoluindo para além dos limites das nossas condições naturais
(Darwin). De repente deparamo-nos com a circunscrição da cultura, nascida de
nós, condição da vida humana em comum (Freud).
Aí estamos: um “animal
político” (Aristóteles). Feitos do acaso, lançados no mundo, sendo enquanto
somos (Heidegger). Pensamo-nos “a medida de todas as coisas” (Protágoras), o
que interpreto (há controvérsias) como a capacidade humana de valorar e
significar tudo, produzindo a realidade.
Nessa condição de acaso,
produzindo juízos grandiosos de nós por nós mesmos, num mundo que nos abriga e
nos aprisiona, não entendemos nossa insignificância diante do Universo
(Malraux). Esse “pobre ator que se pavoneia não percebe que a vida é uma sombra
que caminha” (Shakespeare).
Camus disse que se
filosofássemos para valer consideraríamos o suicídio, o que é desesperador. Mas
o humano resiste: no Vale de Baca, lugar da impossibilidade humana, não obstante
as lamentações, os peregrinos cavam fontes e resolvem sua romaria (Bíblia), o
que é esperançoso.
Entre sermos
insignificantes e a medida de todas as coisas, temos algum valor? Bem, se
conceituarmos, teremos o conceito que nos dermos: se grande, grande; se
pequeno, pequeno. “A grandeza da humanidade consiste na sua decisão de ser mais
forte que a condição humana” (Camus).
Que é ser mais forte do que
a condição humana? De comum, mede-se a grandeza de um\a humano\a por sua fama,
sua marca no mundo, sua inteligência, sua arte, seu poder, Haveria outras
credenciais? A habilitação costumeira é mesmo a relação de alguém com o poder.
Na Tradição Ocidental o
senso comum refere Jesus Cristo como exemplo sobrelevado. Discrepo. O
cristianismo, Cristo de carona, foi imposto de cima para baixo pelo Império
Romano, pelo Império Carolíngio, pela Igreja Católica. Referido como paz, é
produto de sistemática violência.
Se a grandeza humana deve
ser aferida por relações de poder, eu tenho que a referência é Nelson Mandela.
Também Mandela estabeleceu-se na História em decorrência de relações de poder.
No seu caso, porém, tudo veio de baixo para cima. Mandela venceu o poder, não
foi produzido por ele.
Mas, pensando em mim mesmo,
desejo refletir sobre gente comum. Estava meditando se há grandeza fora dos
atos extraordinários. Então me veio a ocasião em que o cotidiano me surpreendeu
com um diálogo escatológico, desses que diminuem a humanidade da humanidade.
Mulher: Fulano, vem cá.
Homem: Que é? Mulher: Vem cá, seu porco. Olha, tudo mijado. Homem: E fui eu?
Mulher: Fede a cerveja, seu porco. Homem: Vai à merda. Mulher: Seu porco.
Homem: Mijei e mijo. Na minha casa, mijo e cago onde eu quiser. Mulher: Seu
mijão, seu cagão, seu porco.
O mais não sei; não
escutei. Mas estou informado de que a mulher, depois dessa, se foi para não
voltar. O homem, acanhado, vive acompanhado de sua cerveja. Conversas
expositivas de uma vida conjugal desgastada são vexatórias e nos deixam no piso
da estética existencial.
Na sequência dessa baixeza,
afortunadamente, me veio a beleza do que em seguida me sucedeu. Eu me deslocava
de automóvel e atendi uma senhora que, acompanhada de uma adolescente, pediu
carona. Ela entendeu de alojar a menina no banco da frente, pondo-se no de
trás.
Havia música, Albinoni,
Adágio. A menina escutou curiosa, a expressão admirada. Chorou aos prantos.
Então me olhou. Que fazer? Claro, pensei com os meus critérios: eis a grandeza
da humanidade. Mas... E agora? Para o bem e para o mal, ela sabe da música.
Como lidará com isso?
A mim, ficou-me uma alegria
e algo nostálgico. A alegria é do apreciar o efeito que a música lhe fez. A
nostalgia é por haver tomado o episódio para me elevar o dia mal-inaugurado com
a discussão coprológica, sem atentar o suficiente para o recado que me era dado
pelo espanto e pelo choro.
Depois que chegamos, depois
que saltaram, só depois assuntei: a menina e a música se encontraram. O rosto
espantado, os olhos chorados importavam. Importam. São do melhor da humanidade.
Eu devia ter feito algo. Cuidei da admiração, não da admirada. Faltou grandeza.
Claudiquei
Léo Rosa de Andrade -
Doutor em Direito pela UFSC.
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