O aumento geral da criminalidade, especialmente em relação aos
crimes cometidos com emprego de violência contra a pessoa – assassinatos,
latrocínios, roubos, sequestros, etc.- apresenta um prontuário de ocorrências
disseminadas nos mais variados pontos do País sem que haja a sua eficaz
repressão, fomentando assim o sentimento geral de insegurança pública, com
todas as suas consequências e reflexos na qualidade de vida e no cotidiano dos
brasileiros.
Ao mesmo tempo, e contrastando com essa iniquidade repressora,
o cidadão brasileiro vem atualmente se deparando com um volume crescente
de notícias sobre investigações bem sucedidas tendo por objeto os
chamados “crimes de colarinho branco”. Dentre esses registros
diários de apurações de atos delituosos - que muitas vezes têm sido chamados
“malfeitos” - os mais impressionantes são os perpetrados contra o patrimônio de
nossa maior empresa pública, a Petrobras, envolvendo quantias financeiras
fabulosas e indícios de participação de importantes figuras do mundo político e
empresarial em conluio com agentes públicos de alto escalão, cujas tenebrosas
transações se apoiam na cumplicidade promíscua de indivíduos
de baixa qualificação e poucos escrúpulos.
E aqui cabe um parêntese: tratar essas ações como “malfeitos”
(ou mau feitos?) chega a ser uma aberração, posto que são crimes com todas as
características pertinentes a essas condutas anti-sociais, envolvendo atos de
planejamento e preparação que apontam o intuito inequívoco de formação de
quadrilha, e cuja consumação rendeu satisfações financeiras aos seus autores.
De fato, os últimos anos registram um aumento espantoso no
conhecimento da prática dos chamados “crimes de colarinho branco”, assim
conhecidos por envolverem a participação de indivíduos de pelo menos razoável
nível de instrução e/ou por terem como objeto a aquisição ilícita de bens ou
capitais. Outras características importantes dos delitos dessa criminalidade:
exigem sempre uma premeditação, com planejamento menos ou mais elaborado
e uma operacionalidade menos ou mais complexa e sofisticada; essa premeditação
inclui a avaliação da impunidade dos autores; têm quase sempre a participação
de pelo menos duas pessoas em associação criminosa, ou são frutos do “crime
organizado”; e costumam se utilizar de informação privilegiada ou do
posicionamento profissional de um dos partícipes.
É de se destacar que os crimes de corrupção, prevaricação,
fraude fiscal, “lavagem” de dinheiro ou de capitais e outros que compõem esse
universo criminógeno, minam o patrimônio público e afetam a vida
financeira e política da nação, além de seu efeito moral nocivo e seu péssimo
exemplo para a coletividade.
Ademais da notável evolução da circulação das informações e de
sua democratização, que aportam um maior conhecimento desses fatos - graças à
liberdade de imprensa, em especial o chamado “jornalismo investigativo”,
e aos canais de redes sociais proporcionados pela internet - o registro dessas
apurações está tendo uma maior exposição graças ao próprio êxito que elas
alcançam.
Sucesso esse que demonstra a inegável vontade política de
determinadas instituições públicas em bem e fielmente cumprir o seu dever, como
é o caso do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e da Justiça
Federal, juntos harmonicamente na apuração dos casos de evidentes desmandos
praticados na Petrobras. É bem verdade que esses operadores da investigação
criminal ganharam independência e autonomia de atuação a partir da Constituição
de 1988, a ponto de dispensarem manifestações de apoio ou rejeição da parte de
qualquer autoridade externa. Já se foi o tempo do “eu determino tal
investigação”; hoje elas decorrem do simples cumprimento do dever legal de
apurar situações ilícitas.
Contudo, no Estado Democrático de Direito, a simples disposição
e vontade política no cumprimento do dever e do exercício das atribuições não é
suficiente para o desempenho dessas ações apuradoras, que se deparam com
delitos muitas vezes de natureza complexa, cercados de obstáculos vários
e de precauções para o seu encobrimento. Inclusive essas atividades dos
encarregados de situar um fato como crime e obter as provas de sua autoria
podem vir a afetar a privacidade e outras liberdades individuais
dos indivíduos investigados.
Por tudo isso, as atuações das instituições e agentes públicos
nesse sentido exigem a presença de um ordenamento jurídico específico que as
legitimem, pois somente devem executar o que está previsto em lei. Quer
dizer, qualquer ação de apuração desenvolvida por um agente público só é
legítima e válida se estiver prevista por alguma disposição legal.
É exatamente nesse campo do ordenamento jurídico específico
que reside a maior contribuição para o aumento e sucesso das
investigações criminais em comento. Isso graças a um conjunto de disposições
legais que foram sendo editadas, instituindo novos tipos de condutas
criminosas, criando novos mecanismos de investigação criminal (muitos
decorrentes de avanços científicos e tecnológicos), definindo as
atividades de investigação policial e seus limites, e circunscrevendo a
participação da Polícia, do Ministério Público e do Juiz.
Sempre focados nos crimes envolvendo a Petrobras, vejamos,
então, quais os principais diplomas legais que proporcionam essa contribuição,
e que são, no nosso entender, os principais responsáveis pelo sucesso nas
investigações desses crimes e de outros semelhantes.
Antes de abordar esses dispositivos legais e as novas
contribuições por eles proporcionadas, cabe registrar algumas iniciativas
precursoras e embrionárias na forma de uma série de projetos de lei
reunidos no que foi chamado “Pacote contra a violência”. Com os
objetivos de combater a violência, a criminalidade organizada e proporcionar a
redução da impunidade, esse “pacote” teve a iniciativa do Poder Executivo e
adveio em 1994, no final do período de governo do presidente Itamar
Franco. Muitos desses projetos inspiraram a implementação de leis de
grande importância para a repressão da criminalidade, inclusive algumas que
serão objeto de comentários a seguir.
Primeiramente vale lembrar que a Lei 9.034, de 3 de maio de
1995, instituiu novos mecanismos de apuração das atividades crime organizado e
do combate às organizações criminosas. Esse diploma legal, certamente por
seu pioneirismo, não exteriorizou com felicidade a sua abordagem da
criminalidade organizada, mas merece registro por suas boas intenções.
Já a Lei 9.296, de 24 de julho de 1996, regulamentando o
inciso XII do artigo 5 da Constituição, regulamentou as interceptações de
comunicações telefônicas e do fluxo de comunicações em sistemas de
informática ou telemática para fins de investigação criminal ou instrução
processual, sendo que o seu art. 1o se destina a reprimir os
abusos de sua prática, prevendo o crime de quebra do sigilo de dados.
Assim, a escuta telefônica, e os registros dessas
comunicações, o acesso aos dados computadorizados e telemáticos passaram a ser
instrumentos legais para a descobertas de crimes e identificação de seus
autores, logrando também a serem admitidos como meio de provas na instrução
processual penal.
Mais um mecanismo proveitoso para essas apurações foi
viabilizado pela Lei Complementar n. 105, de 10 de janeiro de 2001, que
dispôs sobre o sigilo das instituições financeiras, disciplinando o que
constitui ou não sigilo. Dentre as suas disposições, o art. 1, parágrafo 4
autoriza a quebra do sigilo de informações de bancos e demais instituições
financeiras para a apuração de vários tipos de crimes.
Destaque todo especial na investigação criminal para uma lei que
também diz respeito à atividade financeira. Trata-se da Lei 9.613, de 3 de
março de 1998, que trata dos crimes do que se denomina “lavagem” de dinheiro –
qual seja, as “ações destinadas à ocultação de bens, direitos ou valores
provenientes de infração penal” - introduzindo importantes mecanismos de
controle na atividade financeira nacional, sendo o principal deles a criação da
Comissão de Controle das Atividades Financeiras/COAF. Os registros de
atividades financeiras de elevado valor obtidos junto ao COAF foram de
fundamental utilidade para as identificações das situações criminosas do “Caso
Petrobras” e para a consequente apuração. É de se registrar que a Lei
12.683/ 2012 proporciona o aperfeiçoamento de algumas de disposições dessa
supracitada lei.
Outro mecanismo inovador, a chamada “delação premiada”,
merece maiores comentários por ter crescido em importância prática, mesmo
fundamental, nas recentes apurações dos crimes envolvendo a Petrobras.
Depois de uma presença tímida e limitada em algumas leis
anteriores, cuja aplicação ficou dependente de regulamentação futura, a figura
da “delação premiada” passou a ter viabilidade e aplicação para todos os
crimes com a Lei 9.087, editada em 1999.
A Lei 9.087, de 13 de julho de 1.999 – cuja elaboração teve a
participação deste autor – compreende um conjunto de disposições objetivando a
proteção individual às testemunhas ou vítimas de crimes, sendo que a
disposição em garantir a incolumidade física dos indivíduos nessa situação se
constitui em incentivo a sua colaboração na investigação e na instrução
criminal.
A lei institui, também, um conjunto de normas de proteção
individual aos réus “colaboradores”, prevendo a possibilidade de redução da
pena ou perdão judicial em decorrência da colaboração efetiva no desvendamento
do crime em que tiveram participação, o que vem sendo chamado “colaboração
premiada” ou “delação premiada”. Com a garantia da incolumidade
física e a possibilidade de benefício penal, o delator sai
do status de réu para se transformar na principal testemunha do crime por ele
cometido, quebrando assim a lei do silêncio que impera no crime organizado,
e que se constitui na “espinha dorsal” de sua impunidade.
Apesar dessa “colaboração” com redução de pena ou perdão
judicial figurar em alguns dispositivos legais anteriores, o seu tratamento
tímido e reduzido não proporcionava viabilidade prática, e assim a Lei
9.087/99, além de ampliar o seu espectro para todos os crimes, permitiu
aplicação imediata.
Ressalte-se que a referida Lei 9.087/99 viria a ter importante
aperfeiçoamento com a recente vigência da Lei 12.850, de 2013. Esse dispositivo
recente, de fato sucedeu a Lei 9.034/95, revogando as suas
disposições para dar um tratamento mais preciso ao crime organizando a
partir de sua definição, se estendendo na abordagem dos meios de
obtenção de prova, notadamente na regulamentação do procedimento da
“colaboração premiada” no âmbito policial e na esfera judicial, no que
complementou as previsões da Lei 9.087/99.
Um olhar na cronologia dessas leis inovadoras permite a
verificação de que foram editadas no período que compreende os anos 1994
a 2002, tendo assim em comum o fato de terem sido elaboradas e/ou
sancionadas no período de governo do presidente Fernando Henrique Cardoso . E
na maioria das vezes foram resultantes de iniciativas do próprio poder
Executivo, de forma isolada ou compartilhada com parlamentares.
Assim, com menção honrosa ao governo Itamar Franco por sua
contribuição em algumas iniciativas embrionárias, o governo FHC passa para a
história do Direito Criminal brasileiro como o inovador de um ordenamento
jurídico moderno e capaz de proporcionar meios à investigação da criminalidade
de “colarinho branco”. O que nos leva a afirmar que a eficácia e o êxito
das investigações dos atuais crimes envolvendo a Petrobrás podem ser reputados
como uma “herança” por ele deixada aos seus sucessores.
Depois desse período não nos acode inovação expressiva nesse
segmento específico da legislação criminal, onde as exceções são a Lei
12.683/2012 e a Lei 12.850/2.013 ambas mencionadas. Essa última resulta
em um necessário e bem sucedido aperfeiçoamento de leis anteriores, sobretudo
na regulamentação do procedimento de apresentação e aceitação da “delação
premiada”. Sancionada pelo Executivo, é importante assinalar que o mérito de
sua iniciativa cabe a então senadora Serys Slhessarenko, por via do
Projeto de Lei do Senado n. 150, de 2006.
A guisa de conclusão, a aplicação pratica dessas leis permite
afirmar que à hora atual o ordenamento jurídico brasileiro especifico à
investigação de crimes proporciona instrumentos eficazes e segurança
jurídica aos seus operadores, com reflexos no êxito de suas atividades
apuradoras.
Evidentemente tal ordenamento sempre pode ser aperfeiçoado,
sobretudo em inovações pontuais, mas com o necessário cuidado para
evitar exageros e pirotecnias que possam mesmo vir a prejudicar a
viabilidade prática que situa esse campo jurídico-legal
dentre os mais avançados dos países democráticos.
O Brasil espera que as investigações do “Caso Petrobras”
prossigam até o seu final deslinde. Muito já foi feito, mas é preciso atingir o
“fundo do poço”, que parece ser abissal, como os do “Pré-sal”. Nesse
prosseguimento, é imperioso que a agilidade que tem sido demonstrada pelos
operadores que as conduziram até o presente momento tenha continuidade nos
demais juízos e instâncias que os sucederão. Para tanto, essas investigações
contam com as garantias legais e o apoio da opinião pública, bastando que cada
um de seus operadores exerça o seu dever funcional, cumpra as suas atribuições.
Vamos aguardar o desfecho.
Por Humberto Espinola
Professor de direito Penal, membro do Ministério Público do Distrito Federal e
ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos Humanos.
Professor de direito Penal, membro do Ministério Público do Distrito Federal e
ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos Humanos.
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