Há seis meses a reforma tributária é o assunto
predominante na pauta econômica nacional. Demanda antiga da sociedade, em
especial dos setores produtivos, foi anunciada pelo governo Luiz Inácio Lula da
Silva como uma das prioridades da nova gestão federal como forma de tornar o
Brasil mais atrativo para os investidores e alavancar o Produto Interno Bruto
(PIB) em pelo menos 5,5% no prazo de 10 anos.
Tendo à frente o ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, a reforma foi prometida como neutra - em relação à carga tributária - e
simplificadora, com efeitos altamente positivos porque reduziria custos
burocráticos e acabaria com a autofágica guerra fiscal derivada da tributação
sobre o consumo no destino e não mais no local da produção dos bens e serviços.
O discurso criou uma onda de otimismo com a
perspectiva de o novo marco pôr fim ao manicômio tributário em que se
transformou o país. Vislumbrou-se, finalmente, a correção de grande parte das
injustiças tributárias e maior segurança jurídica para os cidadãos, empresários
e investidores.
Esse clima, entretanto, não resistiu às primeiras
ações do governo no sentido de dar concretude à promessa. A expectativa começou
a ser baixada pelo próprio governo, que logo passou a admitir o crescimento do
PIB em 2% em uma década, muito abaixo da estimativa inicial.
O próximo passo foi fatiar a reforma. Na Proposta
de Emenda Constitucional (PEC) enviada ao Congresso Nacional, a tão sonhada
simplificação resumiu-se à aglutinação de cinco tributos - IPI, PIS e COFINS
(todos da União), ICMS (dos estados) e ISS (dos municípios) - em apenas um, o
Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), com duas alíquotas, uma federal e outra de
caráter estadual e municipal. Foram anunciados como os pontos mais positivos da
proposta a cobrança de imposto no destino e não mais na origem, com transição
gradativa e planejada para implementação completa em 9 ou 10 anos, já a partir
de 2024/2025; a unificação da legislação em todo o território nacional; a
tributação diferenciada substancialmente menor ou até mesmo a isenção sobre
produtos de primeira necessidade, e a eliminação definitiva de
cumulatividade. A tributação sobre o consumo seria completada pela
instituição do Imposto Seletivo Federal (ISF), aplicável sobre bens nocivos à
saúde e ao meio ambiente.
Com o texto aprovado na Câmara dos Deputados e
enviada ao Senado, as análises dos especialistas revelaram um ponto amplamente
positivo: excepcionalidades amplamente redutoras de tributação sobre produtos
da cesta básica, hortifrutis, transporte coletivo e produtos das áreas de saúde
e educação.
No entanto, essas excepcionalidades - talvez
resultantes de pressões setoriais - acabaram atingindo um patamar muito
elevado, a ponto de comprometer o atual nível de arrecadação tributária. Para
se alcançar o equilíbrio, haverá a necessidade de tributação sobre os setores
não contemplados no texto com aplicação de alíquotas muito elevadas,
possivelmente no patamar entre 25% e 29% da receita. Isso elevará o Brasil à
condição de uma das 4 maiores tributações sobre o consumo do planeta. A título
de exemplos, nos Estados Unidos essa tributação é de 7,5%, na Suíça, de 7,70%;
no Japão e na Coréia do Sul, 10%; no Canadá, 5%, e no México, 16%. O atual
recordista é a Hungria com 27%.
É assustador, ainda que, a priori, não seja
possível concluir definitivamente sobre o aumento ou redução da carga
tributária porque as alíquotas do novo IBS somente serão definidas por Lei
Complementar, em até 180 dias após a aprovação da PEC pelo Congresso Nacional,
o que provavelmente se dará apenas no segundo ou terceiro trimestre de 2024,
com risco de tramitação mais lenta em razão de ser um ano eleitoral.
O cumprimento da promessa de neutralidade, por sua
vez, ainda é uma incógnita porque não são conhecidas as propostas do governo
quanto aos tributos sobre renda, patrimônio, encargos sociais e
previdenciários, e outros, cuja soma corresponde a 56%-58% do produto total
atualmente arrecadado.
Da mesma forma, não foram revelados os produtos e
setores a serem tributados pelo ISF, bem como os tetos das alíquotas e como
serão aplicados os recursos tributários garantidos pelo novo imposto.
Essas questões transformaram o otimismo em
inquietação de vários setores econômicos diante do efeito negativo desses
índices caso o Senado, na apreciação do projeto, não corrija tais distorções. A
gritaria já começou. O Centro de Estudos das Sociedades dos Advogados calculou
que a categoria sofrerá aumento superior a 400% na tributação.
Empresários dos setores de construção e serviços afirmam que atividades hoje
tributadas entre 3,65% até 8% sofrerão, com o novo IBS, aumentos que podem
chegar a mais de 100%.
O apelo, agora, é para que o Senado examine com
maior atenção o fato de que as reduções substanciais concedidas a muitos
setores - inclusive não essenciais - levará à punição de outros setores de
atividades importantes para o país. Uma saída talvez seja o Senado fixar na PEC
o teto de tributação do IBS e do Imposto Seletivo, bem como vetar a majoração
de alíquota antes de completada a transição do regime de cobrança na origem
para a cobrança no destino, o que deverá acontecer em 2033.
Também soou estranho que, em plena tramitação da
primeira etapa da Reforma Tributária na Câmara dos Deputados, o governo federal
tenha atropelado a PEC da reforma, editando num domingo (30 de abril) a Medida
Provisória nº 1.171, pela qual passou a tributar os rendimentos de brasileiros
residentes no País e que possuem investimentos financeiros em empresas ou
trusts sediados em paraísos fiscais e/ou em locais com regime tributário
diferenciado, como é caso do estado norte-americano de Delaware. A MP inclusive
estabeleceu alíquotas progressivas que podem chegar a 22,5% sobre os
recebimentos, inclusive sobre desvalorização do real.
A mesma MP irá alcançar também a transferência de
bens - imóveis, cotas e/ou ações de empresas, etc - para herdeiros e
sucessores, em vida ou pós-morte (ITCMD). Trata-se de outro ponto que merecerá
atenção especial dos senadores, uma vez que patrimônio nem sempre confere
liquidez ao sucessor ou herdeiro. Além disso, não está explícito se será
respeitado o princípio da capacidade contributiva dos beneficiários. Matéria
que requer urgência, pois esse tributo produzirá efeito já em 2024 (portanto
antes do IBS, que vigorará a partir de 2026) e, embora não tenha sido fixada
alíquota progressiva de até 22,5% para rendimentos financeiros, não existe no
texto da MP qualquer referência ao ITCMD.
Ainda chama a atenção na nova postura do governo em
relação à reforma o anúncio de estudos para a tributação dos cidadãos
super-ricos, detentores de fundos de investimento exclusivos ou outros
diferenciados e com poucos cotistas, utilizados por famílias de alta renda que
pagam impostos apenas na hora do resgate. Projeto de Lei com a medida deverá
ser enviada ao Congresso já em agosto, após o fim do recesso parlamentar.
Além disso, igualmente por meio de legislação
infraconstitucional, o governo pretende implantar a tributação sobre apostas
esportivas - conhecidas como Bets), com alíquotas de 18% sobre o total de
apostas das empresas, e de até 30% do valor bruto auferido pelos ganhadores,
além de instituir cobrança de outorga sobre a atividade.
É indisfarçável a mudança de comportamento do
governo nessa questão. O ministro da Fazenda, que vinha priorizando a PEC da
Reforma e conduzindo o processo de maneira habilidosa - ganhando elogios de
parlamentares, agentes econômicos e de grande parte da mídia -, agora opta por
priorizar o aumento da arrecadação para a União em 2024, uma vez que a reforma
tributária, por força de lei, não poderá produzir efeitos para o próximo ano e,
talvez, sequer para 2025, à exceção do Imposto Seletivo.
No mercado, já existe a sensação de que o governo
perdeu o interesse por uma reforma ampla, preferindo garantir aumento da
receita da União a curto prazo por meio de leis e medidas provisórias, como a
MP 1.171, vislumbrando algo em torno de R$ 180 bilhões para a somatória das
ações acima mencionadas.
O fato é que ficará muito difícil saber qual será a
carga tributária no Brasil, pois o fatiamento sem prévia discussão no Congresso
impedirá a noção do conjunto, o que não é bom.
Nessa sanha arrecadadora, o governo desrespeita o
Congresso e contradiz seu próprio discurso inicial segundo o qual a reforma
tributária é fundamental para o país, como de fato é.
Corre-se o risco de o Brasil desperdiçar excelente
oportunidade para remodelar o nosso criticado arcabouço tributário para
salvaguardar apenas um ente federativo (a União), aumentando sua fatia no bolo
arrecadatório que já é grande, entre 59% e 60% de tudo o que é arrecadado
compulsoriamente.
O momento atual anuncia a repetição de velhos
erros, muito custosos ao desenvolvimento nacional, notadamente a busca pelo
equilíbrio fiscal ou redução do déficit público (hoje no insuportável patamar
de 8% a 9% do PIB) somente pelo aumento da tributação, que atualmente alcança
33,91% do PIB. Nada se fala sobre redução de privilégios, ganho de eficiência,
cortes de gastos e combate explícito e efetivo à corrupção.
O Brasil continua a ignorar a advertência feita
pelo filósofo romano Marco Túlio há 2.078 anos, mas ainda atual: "O
orçamento deve ser equilibrado, o tesouro público deve ser reposto, e a
dívida pública deve ser reduzida, e a arrogância dos funcionários públicos deve
ser moderada e controlada e ajuda a outros países deve ser eliminada, para que
Roma não vá à falência. As pessoas devem novamente aprender a trabalhar em vez
de viver às custas do estado."
A correção do rumo é urgente e possível. E, mais
que um reclamo dos setores produtivos, uma necessidade do país.
Samuel Hanan - engenheiro, com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros Brasil, um país à deriva e Caminhos para um país sem rumo.
https://samuelhanan.com.br