Era tarde da noite. Vinha-me embora pensando nos meus pecados, imaginando outros melhores para cometer. Faz alguns anos. No caminho da praia onde morava, passa-se por uma cidadezinha, sempre deserta nas melhores horas para se viver. Deparo com um veículo mal estacionado, capô aberto. Ao lado, uma moça. O automóvel estava na minha mão de ida, mas, por precaução, encosto no lado oposto da rua.
Olho, mas não falo nada por uns instantes. Por fim, abaixo o vidro e pergunto se há necessidade de ajuda. Ouço que não, que está tudo bem. Respondo com tranquila firmeza: “Olhe, eu não vou sair do carro sem a sua permissão; se a senhora necessita de auxílio, diga, então eu fico... Se disser para eu ir embora, eu me vou. Mas... pense bem antes de responder”. Logo veio: “Em nome de ‘deus’ (suponho que haja usado maiúscula), me ajude”.
Desembarquei, permaneci quieto por um instante, olhei para a mulher, sorri e falei: “Desculpe, mas nós estamos em um impasse: a senhora quer que eu a ajude em nome de deus; eu me disponho a ajudá-la, mas por modesta solidariedade humana. Não quero intermediar interesses divinos, isso sempre acaba em briga... Até em guerra”. Com olhos arregalados, questionou com explícita censura: “O senhor não tem religião?”
Dei de ombros e disse: “Olhe, a senhora acha mesmo importante ter uma?” Aí, confesso, a resposta me surpreendeu: “Ai!, o ‘senhor’ (seguramente, ela usou maiúscula) escreve mesmo por linhas tortas: mandou-me um pecador”. Mas me refiz: “Bem, uma pessoa que crê tem sempre uma primeira tarefa: levar a ‘palavra’; converter o incréu. Então, deixamos o carro como está porque, parece, a obra é sua: a senhora é que tem que me socorrer”.
O susto agora foi dela: “Será?!” Mas nisso percebo que no banco de trás do automóvel dormia uma criança. Fui olhar a placa do carro. Estávamos nas praias de Santa Catarina, ela vinha do interior do Rio Grande do Sul. Manifesto minha repreensão: “Mas a senhora está vindo de muito longe, sozinha com uma criança, e a estas horas da noite?!” A mulher não titubeou: “Quem confia no ‘senhor’ (claro, com maiúscula) não tem o que temer”.
Meio irritado, meio divertido, forcei uma cara séria e intimei-a: “A senhora pecou de modo feio há pouco tempo, não foi?” A mulher me devolveu outra interrogação: “Por quê?” Falei com severidade: “Oras, por quê?! Porque o seu deus acaba de quebrar o seu carro e mandou um sujeito que não entende nada de mecânica para ajudar. Quem sabe a senhora faz umas orações e “ele” mesmo conserta? Sou inútil aqui. Vou indo”.
As coisas vieram aos termos terrenos. A mulher implorou: “Por favor, não me deixe aqui”. Vingado, suavizei, mas continuei na Terra: “Olha, um humano decente jamais a abandonaria nesta situação; como posso ajudá-la?” Esclareceu, agora sem apelos ao divino: “Meus familiares me procuram... Eu não conheço aqui, e antes que pudesse explicar onde me encontro, fiquei sem bateria”. Liguei aos parentes, expliquei, prometi não me ir.
Não me fui; não me iria. Esperamos um bocado. Ligaram, ligaram. Detalhei, detalhei o caminho até nós. Já irritado, cumpri o dever de ficar. Chegaram os parentes. Saltou o tio. Agradeceu-me muito em nome do “senhor” (com maiúscula). Cansado, não contrapus um único som. Aí, saltou a prima. Era um encanto. Com graça e sabedoria elucidou as razões celestiais de eu estar ali. Então, estive convertido, por todo aquele verão.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
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