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sábado, 13 de julho de 2024

A escrita como passaporte e sobrevivência frente ao machismo e misoginia

OPINIÃO

 

Uma vez eu disse que queria ser escritora. Isso deve ter sido por volta de 1985. Os milicos tinham saído fora e a gente sonhava com democracia. Palavra bonita: D E M O C R A C I A. 

Em casa, eu assistia às notícias da TV mas não se falava muito de política. Não se falava de cinema, nem de teatro. Dona Lívia sempre mandava ler. Eu nunca precisei obedecer a essa ordem, porque ler era fácil e um jeito bom de ter com quem conversar. Dona Lívia se orgulhava dos 100 títulos que eu li na primeira série. Os olhos dela brilhavam com isso! 

Ela me chamava de Sherazade porque eu contava um bocado de histórias quando chegava da escola. Faço isso agora: conto histórias. As minhas e a de tantas manas que passam por um bocado de coisas só por ter dois XX dos 23 pares de cromossomos. Escrevo e resisto! Escrevo e R E S I G N I F I C O! 

A coluna quebrada virou poema. A sentença de alienação parental virou poema. A maternidade solo virou poema. A solidão pós violência doméstica virou poema. O novo amor, que era mais do mesmo, virou poema. O reencontro com o auto amor virou poema. A passagem de minha mãe para o outro lado do caminho virou poema. 

Da infância, onde música e livros eram o tipo de arte que a gente conhecia, minha escrita foi passaporte e me levou para a FLIP, Feira do Livro, Campinas, São Paulo, Rio de Janeiro, comunidade de Paraisópolis, Parada Poética, Casa das Rosas, praça, boteco, telão de festa da família e por aí vai…Eita que rodei! Fui a tantos lugares e fiquei neles.  E mesmo quando não consegui chegar, minha poesia foi e ficou. 

Carolina de Jesus já dizia: “Por mais que o desenho tenha sido feito a lápis e que seja de boa qualidade a borracha; o papel vai sempre guardar o relevo das letras escritas e ninguém vai apagar as palavras que eu escrevi!” Sim! Carolina tinha razão! Como também tinham razão, minha mãe e minha tia Célia quando resolveram nos apresentar ARTE além de música. 

Música era o tipo de arte que entrava e ficava no sobrado da Major Baracca, esquina com a Capitão Rubens. A música nunca faltou naquela casa, do bairro que tinha um bocado de rua com nome de patente e de onde sair era trabalhoso demais. Mas saímos. 

Uma vez, a dona Lívia e a tia Célia nos levaram para ver a exposição da Pinacoteca. Uma fila do cão! Duas mulheres e cinco crianças. Minha mãe e minha tia foram no ônibus e no metrô, dizendo coisas sobre o tanto que estavam indignadas sobre a obra que o Rodin roubou da Camille. Hoje eu entendo que aquele diálogo era uma espécie de acordo entre manas para defender a coitada da Camille Claudel. 

Sim, elas eram feministas e nem sabiam. Assim como minha avó Aldenora que ajudou a mãe solo que morava debaixo da ponte depois que o "pai de família" foi embora e largou a senhora do cabelo cacheado sozinha com quatro filhos. Ou quando se juntava com a tia Lourdes e a Dona Geralda para costurar roupas e ajudar manas sem condição porque o marido não reconhecia necessidade financeira para elas. 

Tenho as melhores ancestrais. Escrevo para louvá-las e para dizer tudo aquilo que tantas de nós mulheres tentamos dizer, mas ninguém ouve. Escrevo para sobreviver, para mudar o mundo e dar força para minhas filhas e sobrinha e para mostrar ao meu filho e sobrinho o tipo de homem que não devem ser. Já disse e vou dizer de novo: escrever é passaporte! Escrever me fez ir e ficar. 

Me fez permanecer nas amizades que eu fiz, nos olhos que vi chorar e no afeto que transbordou por todo canto quando um poema dos que pari ou daqueles outros de antes, durante e depois se conectaram com quem me leu. E foi assim que continuei: ESCREVI. 

E foi assim que SOBREVIVI! Que NÃO SUCUMBI! E foi assim que P E R M A N E C I.  

Mila Nascimento (@srta_mila_nascimento) - escritora, médica endocrinologista, sexóloga e emergencista, além de dedicar parte do seu tempo para cuidar voluntariamente de pessoas em situação de vulnerabilidade social. É autora dos livros "Poemas Paridos de Cócoras - porque assim dói menos" (Minimalismos, 2023) e o recém-lançado "Poemas para antes do banho, durante o café e depois do abandono" (Patuá, 2024).


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