Até o momento não há nenhum respaldo ou suporte na legislação brasileira que ampare o abate humanitário em peixes, que é a cadeia produtiva que mais cresce
I - Sobre o mérito
A senciência
refere-se à capacidade de sentir, entender ou perceber algo por meio dos
sentidos1, sendo um pré-requisito para a
discussão da ciência do bem-estar animal. Isso significa que os seres
sencientes não apenas detectam, observam ou reagem automaticamente às coisas ao
seu redor, mas que também podem senti-las. Do ponto de vista evolutivo, a capacidade
de perceber impressões ou sentir sensações auxilia na sobrevivência das
espécies e, portanto, não é surpreendente que ela tenha evoluído nos seres
humanos e em outros animais, incluindo os peixes2.
Embora a trajetória evolutiva e de desenvolvimento cerebral dos peixes seja diferente da de outros vertebrados, é evidente que existem muitas estruturas análogas que desempenham funções semelhantes às nossas nesses animais3. Um conjunto de evidências anatômicas, fisiológicas, comportamentais, evolutivas e farmacológicas sugere que os peixes são capazes de sentir dor, medo e outros sentimentos de maneira similar aos demais vertebrados, e que a sua percepção e as habilidades cognitivas muitas vezes correspondem, ou até mesmo excedem, a de outros vertebrados³4. Na maioria das vezes, seus sentidos primários são tão bons quanto os nossos e, em muitos casos, até melhores5 6.
Em relação a dor,
estudos demonstram que os peixes não apenas possuem todo o aparato
anatômico-fisiológico que permite detectar o estímulo nocivo que causa dor, mas
também são capazes de transmitir essa informação ao cérebro, onde ela é
processada, desencadeando uma resposta complexa. É por isso que quando um peixe
sente dor, ele raspa a região do corpo afetada em substratos ou rochas, deixa
de se alimentar ou deixa de responder a estímulos que estava acostumado a
responder. Tudo isso indica que eles são capazes de sentir e reagir
conscientemente a diferentes estímulos potencialmente nocivos do ambiente,
favorecendo a sua sobrevivência7 8.
Assim, é evidente
que, como outros animais de produção, os peixes necessitam de considerações de
bem-estar. Entretanto, no momento não há qualquer normativa ou portaria sobre
bem-estar de peixes. A Portaria 365/2021 MAPA/SDA, que aprova o regulamento técnico
de manejo pré-abate e abate humanitário dos animais considerados de açougue,
bem como os métodos de insensibilização autorizados pelo Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), não inclui os peixes. Embora a
portaria mencione o pescado em suas especificações, posteriormente define
pescado como sendo apenas espécies de anfíbios e répteis que são abatidos para
o consumo, sendo que tais animais compõem uma fração praticamente
insignificante dos animais que, de fato, representam o pescado. Os peixes,
juntamente com invertebrados como camarões, lagostas, polvos e lulas, é que
compõem o principal recurso pescado ou produzido pelas grandes indústrias.
No Brasil, com
base nas estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
e em dados científicos publicados em 2022, mais de 350 mil toneladas de
tilápias são abatidas anualmente. Considerando-se um peso médio de 0,8 Kg por
indivíduo, isso implica no abate de mais de 435 milhões de peixes, sem contar
ainda outras espécies de produção no Brasil. Desse montante, mais de 80% são
abatidos com métodos não considerados humanitários, especialmente a hipotermia
em gelo ou água gelada e morte por asfixia9. Visando melhorar esse
cenário em termos de bem-estar para os peixes, o MAPA coordenou a produção e o
lançamento de manuais sobre boas práticas na criação de peixes de cultivo10,
boas práticas no transporte de peixes11 e sobre abate humanitário
nesses animais12 que legitimam o tema, mas sem nenhum respaldo legal
correspondente pelo poder Executivo. Assim, é necessário que haja suporte nesse
sentido para que as considerações de bem-estar propostas nos manuais sejam
levadas a sério e incorporadas na prática. Nesse sentido, um primeiro passo
fundamental é a inclusão dos peixes na legislação que dá suporte para o abate
humanitário de animais de produção.
II - Nossas recomendações
Com base nas
informações apresentadas no Manual do MAPA sobre abate humanitário em peixes e
no que se conhece a partir da literatura científica da área, nós fazemos as
seguintes recomendações no âmbito de respaldar o abate humanitário em peixes
pela legislação nacional:
1. Fase pré-abate: desembarque/descarregamento na chegada ao frigorífico:
● Deve ser feito
com uma canaleta (ponte) ou cano móvel que permita o descarregamento com o
volume total de água no transporte.
● Prestar atenção
para que nenhum peixe se machuque ou caia dessa canaleta/cano no processo.
● No tanque de
recepção/depuração, deve-se avaliar: viabilidade, apetite, quantidade de perda
de escamas, padrão de cardume e mortalidade. Lembrar que o estresse do
transporte afeta a fisiologia e o apetite por dias após a descarga, o que
requer monitoramento constante de ferimentos e doenças.
● Peixes
moribundos ou gravemente feridos devem ser removidos e eutanasiados.
2.
Fase de insensibilização e abate:
2.1.
Insensibilização por percussão não perfurante:
● 15 segundos
entre a retirada do peixe da água, sua contenção e sua insensibilização são
aceitáveis.
● Administrar um
golpe severo com instrumento sólido no crânio do peixe, que deve permanecer
inconsciente até a morte.
● O golpe deve ser
aplicado acima ou adjacente ao cérebro para causar inconsciência imediata.
● O peixe torna-se
rígido, sem movimento opercular, permanecendo com a boca aberta e sem reflexos
oculares.
● A percussão pode
ser realizada manualmente com pistola pneumática (pistola de dardo cativo), ou
de forma mecanizada (equipamentos específicos geralmente alimentados por ar
comprimido com pressões entre 90-120 p.s.i.: 6-8 bar).
● Essa técnica tem
menor risco, é mais efetiva e mais facilmente realizada em peixes de maior
porte como as carpas e o tambaqui.
● Importante:
deve haver planos de contingência para o caso de haver uma falha do equipamento
ou outra ocorrência inesperada que possa resultar em peixes sendo deixados fora
da água ou na máquina de insensibilização. Obs: a percussão manual e o corte
das brânquias podem ser uma alternativa adequada nesses casos.
2.2.
Insensibilização por percussão perfurante:
● 15 segundos
entre a retirada do peixe da água, sua contenção e sua insensibilização são
aceitáveis.
● Inserir uma faca
afiada, uma chave de fenda afiada ou ferramentas especialmente projetadas com
uma haste perfurante (ponta) no cérebro do peixe.
● O impacto da
ponta deve produzir inconsciência imediata.
● Por não provocar
a morte imediata, deve necessariamente ser seguida de um método de sangria como
a decapitação ou o corte de brânquias.
● Para peixes
comprimidos lateralmente (ex: tilápia-do-Nilo) usa-se o acesso lateral da
cabeça do animal; já para peixes fusiformes (forma de torpedo, ex: carpa-capim)
e peixes chatos (ex: bagres brasileiros), usa-se o acesso dorsal da cabeça do
peixe.
Sinais de insensibilização percussiva eficaz:
● Perda de
movimento opercular
● Perda de
movimento dos olhos
● Abaulamento do
anel muscular próximo a nadadeira peitoral
2.3.
Insensibilização elétrica (eletronarcose):
● Pode ser
realizada dentro da água ou à seco fora da água, sendo que o tempo de 15
segundos entre a retirada do peixe da água, sua contenção e sua
insensibilização é aceitável.
● Consiste na
passagem de corrente elétrica através do cérebro com força suficiente para
resultar em inconsciência imediata.
● Os peixes devem
entrar de cabeça na máquina para assegurar insensibilização.
● Deve durar tempo
suficiente para garantir que o animal não recupere a consciência antes da morte
por sangria (considerar o tempo para que ocorra a perda suficiente de sangue
para causar a morte).
● Para peixes de
água doce, normalmente a força requerida é de 3V/cm, enquanto na água do mar a
força requerida pode ser três vezes menor. A carga elétrica deve ser liberada
por 10-60 s.
● Frequências
próximas a 50Hz têm um efeito maior no cérebro e no músculo do peixe, mas que
pode causar danos à carcaça. Assim, frequências maiores são recomendadas.
● Deve ser seguida
de um método de sangria como a decapitação ou o corte de brânquias.
● A combinação de
corrente alternada com corrente contínua tem um efeito positivo em evitar
lesões e danos na carne dos peixes.
● Importante: é
essencial que os peixes sejam classificados por tamanho antes da
insensibilização.
Sinais
de insensibilização elétrica eficaz:
● Perda de
movimento opercular
● Perda de
movimento dos olhos
● Pequenas
contrações musculares
● Perda de posição
normal do peixe
3.
Métodos de abate proibidos:
● Hipotermia em
gelo ou água gelada
● Asfixia (deixar
o peixe fora d’água)
● Sangria sem
insensibilização prévia
● Narcose por
dióxido de carbono (CO2)
● Evisceração e
filetagem sem insensibilização e abate prévios
4.
Monitoramento para assegurar rápida perda de consciência e morte antes do
animal recobrar a consciência:
● Os peixes devem
ser monitorados regularmente durante toda a operação.
● Se houver dúvida
sobre se um peixe está inconsciente ou não, não hesite em repetir a
insensibilização ou usar um método alternativo.
● Indicadores
comportamentais de inconsciência em peixes para monitoramento:
1. Nado: observar
comportamento natatório espontâneo. Ausência de nado indica inconsciência.
2. Equilíbrio na
água: inverter o peixe. Incapacidade de retomar à posição normal indica
inconsciência.
3. Manejo: pegar e
pinçar a nadadeira caudal (dentro ou fora d’água). Ausência de resposta indica
inconsciência.
4.
Picada/beliscada: picar levemente o lábio (fora d’água). Ausência de resposta
indica inconsciência.
5. Choque de 6 V:
estimular o lábio (fora d’água) com choque de 6 V. Ausência de resposta indica
inconsciência.
6. Movimento de
virar os olhos: rolar o peixe de um lado para o outro fora d’água e observar o
movimento dos olhos. Olhos fixos (acompanhando o movimento da cabeça) indicam
inconsciência.
7. Respiração:
observar o rítmico batimento opercular dentro d’água. Ausência de movimentos ou
movimentos aleatórios do opérculo indicam inconsciência.
Observação: atentar para o fato de que algumas
espécies não respondem à picada ou ao choque mesmo quando conscientes, e que há
espécies com movimentos operculares restritos, de difícil observação.
1 SENCIÊNCIA. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2020. Disponível em: https:// www.dicio.com.br/trabalho/. Acesso em: 23/05/2021.
2 Broom DM; Molento CFM. Bem-estar animal: conceito e questões relacionadas - Revisão. Arch Vet Sci, 9:1-11. 2004. doi: 10.5380/avs.v9i2.4057.
3 Brown, C. Fish intelligence, sentience and ethics. Anim Cogn 18, 1-17. 2015. doi: 10.1007/s10071-014-0761-0.
4Vila Pouca C, Brown C. Contemporary topics in fish cognition and behaviour. Curr Opin Behav Sci, 16:46-52. 2017. doi:10.1016/j.cobeha.2017.03.002.
5 Bshary R; Wickler W; Fricke H. Fish cognition: a primate’s eye view. Anim Cogn, 5:1-13. 2002. doi: 10.1007/s10071-001-0116-5.
6 Brown C; Laland K; Krause J. Fish cognition and behavior. In: Brown C, Krause J, Laland K (eds) Fish cognition and behaviour. Wiley, Oxford, pp 1-9. 2011.
7 Sneddon, LU. Pain in aquatic animals. J Exp Biol, 218: 967-976. 2015. doi: https://doi.org/10.1242/
8 Pedrazzani, AS et al. Bem-estar de peixes e a questão da senciência. Arch Vet Sci, 11: 60-70. 2007. doi: http://dx.doi.org/10.5380/avs.v12i3.10929.
9 Coelho ME et al. Fish slaughter practices in Brazilian aquaculture and their consequences for animal welfare.Anim Welf, 31: 187-192. 2022. doi: 10.7120/09627286.31.2.003
10 MAPA. Manual de boas práticas na criação de peixes de cultivo. 2022. Acesso: Manual_BP_cultivo_ISBN_ok2.pdf (www.gov.br)
11 MAPA. Manual de boas práticas no transporte de peixes. Acesso: Manual_BPtransporte_ISBN_ok2.pdf (www.gov.br)
12 MAPA. Manual de abate humanitário de peixes. Acesso: Manual_3_Abate_Humanitario_peixes_ISBN.pdf (www.gov.br)
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