Resultados divulgados por pesquisadores do ICB-USP podem apontar novos alvos terapêuticos para o tratamento de doenças relacionadas ao envelhecimento, como as neurodegenerativas e as cardiovasculares (imagem: NIA/NIH)
A mitocôndria é uma organela vital para o organismo, pois produz, a partir dos alimentos, a maior parte da energia usada pelas células. Embora pareça um contrassenso, há evidências de que um leve comprometimento da função mitocondrial esteja associado ao aumento da longevidade.
Em estudo recentemente publicado no periódico The Embo Journal, um grupo internacional de pesquisadores desvendou de que forma isso acontece. Segundo os autores, o trabalho é o primeiro a mostrar o envolvimento do sistema imune inato (a primeira linha de defesa contra patógenos) nesse processo.
“Quando a mitocôndria funciona abaixo
do que é considerado ótimo, gera um estresse para a célula, que desencadeia uma
série de respostas que protegem esse organismo contra patógenos, fazendo-o
viver mais. Só que existe um limiar: caso a redução da função mitocondrial seja
muito intensa, o sistema pode colapsar”, explica Juliane Campos,
primeira autora do trabalho, que atualmente realiza estágio de pós-doutorado na
Harvard Medical School (Estados Unidos) com bolsa da
FAPESP.
“Hoje sabemos que, perante um leve
estresse mitocondrial [como o induzido pelo exercício físico], a célula se
reorganiza bioquimicamente para compensar tal desequilíbrio e isso a torna mais
preparada para lidar com futuras situações adversas. Agora, se o estresse
mitocondrial é excessivo e prolongado [caso das doenças crônico-degenerativas],
esses substitutos se tornam insuficientes, resultando então no colapso e,
consequentemente, em morte celular”, explica Júlio Cesar Batista Ferreira,
professor associado do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) e da Faculdade de
Medicina (FM) da Universidade de São Paulo (USP) e coautor do trabalho.
Segundo Campos, a disfunção mitocondrial geralmente tem um gatilho. “Existem mutações em humanos que levam a uma disfunção sustentada, geralmente em casos mais graves. Existem ainda algumas condições [como a restrição calórica] que podem reduzir transientemente a função mitocondrial e isso é diferente de indivíduo para indivíduo. A ideia é entender os mecanismos pelos quais essa ligeira perturbação mitocondrial aumenta a longevidade porque, então, pode-se identificar futuros alvos terapêuticos”, resume.
Modelo experimental
Para entender a conexão entre
disfunção mitocondrial leve, longevidade e sistema imune inato, o grupo
utilizou um verme de solo, o Caenorhabditis elegans.
Trata-se de um dos mais conhecidos modelos experimentais para o estudo do
envelhecimento, pois oferece algumas vantagens. Uma delas é a expectativa média
de vida de apenas 17 dias.
“O tempo de vida de um roedor é de
dois anos e meio; de uma drosófila são quatro meses. Portanto, pensando em
termos de tempo de pesquisa, essa é uma vantagem. Além disso, o C. elegans é transparente, o que permite
visualizar órgãos e acoplar proteínas fluorescentes para identificar algum
fenótipo dentro desse organismo. E, apesar de estar longe dos humanos na cadeia
evolutiva, ele tem uma alta homologia com o genoma humano. Até 80% de seus
genes têm homólogos em humanos. Outra vantagem: ele se alimenta de bactéria,
então é muito fácil manipular um gene específico nesse organismo”, explica a
pesquisadora.
Para o experimento, os cientistas
cultivaram uma bactéria e, dentro dela, inseriram uma maquinaria capaz de
deletar um gene no C. elegans. O
microrganismo modificado foi ofertado como alimento ao verme. Ao ingeri-lo,
essa maquinaria começou a agir e desligou um gene específico. Ferreira lembra
que na genética há duas formas de entender o papel de um gene. “Ou você o
retira do sistema e vê o que acontece; ou você aumenta sua expressão no sistema
e avalia o efeito.”
O grupo
queria saber por que o animal vive mais quando a mitocôndria sofre ligeiro
estresse metabólico. Mas essa tarefa não é fácil. “São milhares de genes
produzindo proteínas, que trabalham de maneira coordenada e hierárquica nas
células. Nesse sentido, identificamos os genes críticos envolvidos no aumento
da longevidade decorrente da ligeira disfunção mitocondrial. Como prova de
conceito, desligamos individualmente esses genes e vimos que os animais
deixavam de viver mais frente à ligeira disfunção mitocondrial”, explica
Campos.
A
conclusão é que ativar o sistema imune inato é um pré-requisito para a
longevidade: quando a mitocôndria tem uma ligeira disfunção, ele é ativado e
isso é necessário para o animal viver mais ou se proteger contra patógenos.
“Em suma,
a mitocôndria sob estresse manda um sinal de alerta para o sistema imune. E
esse sinal faz com que o organismo viva mais. Quando a gente deleta genes
relacionados ao sistema imune inato ou impede que eles sejam ativados nesse
animal com leve disfunção mitocondrial, toda essa resposta benéfica é abolida.”
Em trabalhos anteriores publicados
pela equipe, já havia sido estabelecido que dois fatores de transcrição
(proteínas que controlam a transcrição dos genes) estavam envolvidos no aumento
de longevidade desses animais: DAF-16 (em C. elegans) ou FOXO3
(em humanos) e ATFS-1 (em C. elegans) ou ATF5
(em humanos). Mas essas proteínas coordenam diversas vias.
“Sabíamos
que uma leve disfunção na mitocôndria aumentava a longevidade e que esses dois
fatores de transcrição coordenavam o processo, mas queríamos saber por quais
vias eles o faziam. Sabendo que esses fatores também controlam o sistema imune
inato, partimos do pressuposto de que também estariam envolvidos nesse
fenótipo. Este novo trabalho demonstra que tanto a via de sinalização
mediada pela proteína p38 quanto a via de sinalização mediada por proteínas mal
enoveladas mitocondriais [que em inglês são conhecidas pela sigla mitoUPR] atuam
em conjunto sobre os mesmos genes de imunidade inata para promover resistência
a patógenos e longevidade. E as mitocôndrias podem prolongar a longevidade
sinalizando por meio dessas vias. Descobrimos também que o fator de transcrição
ATF 5 consegue avisar os genes do sistema imune que eles precisam formar novas
proteínas, que coordenarão essa cascata de ativação do sistema imune na
célula”, conta Campos.
Abordagens terapêuticas
Segundo
Ferreira, a maioria das doenças que desenvolvemos está associada ao colapso
mitocondrial. Nesse sentido, o melhor entendimento do funcionamento da
mitocôndria em condições de estresse, bem como suas conexões com outros
compartimentos celulares, é essencial para desenvolver estratégias
farmacológicas e não farmacológicas capazes de prevenir, mitigar ou reverter
tal colapso e, consequentemente, tratar pacientes.
De acordo
com o pesquisador, a melhora da expectativa de vida é algo que já observamos há
muito tempo, mas aumentar a longevidade é uma meta ambiciosa. “Não sei se de
fato chegaremos lá, mas acredito que certamente conseguiremos fazer o indivíduo
viver melhor pelo mesmo período, ou seja, promover a melhora na qualidade de
vida. Sabemos que há determinadas doenças associadas ao envelhecimento, como
Parkinson, Alzheimer e distúrbios cardiovasculares. Nesse sentido, a
compreensão das respostas compensatórias e deletérias de mitocôndrias
associadas ao envelhecimento servirá de alicerce para o desenvolvimento de
terapias que atuem no cerne dessas doenças. Com este trabalho colocamos mais
uma peça nesse quebra-cabeça.”
O
pesquisador ressalta a possibilidade de modulação do sistema imune inato, o que
poderia contribuir para que o indivíduo tenha um envelhecimento mais saudável.
“O desafio agora é validar isso ao longo da evolução. Nosso modelo experimental
vive 20 dias e a gente vive 80 anos. Então, agora, temos de verificar qual é o
impacto de nossa descoberta para o ser humano.”
O artigo Mild mitochondrial impairment enhances innate immunity and
longevity through ATFS-1 and p38 signaling pode ser lido
em: www.embopress.org/doi/full/10.15252/embr.202152964.
Karina Ninni
Agência
FAPESP
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