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segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

AFETO, CARNE, AMOR

Consegui guardar um tempo, voltei aos livros... Talvez até escreva, assim, por escrever, dizer sobre as coisas, imaginar um pouco...


– Tempo... administrar o tempo, talvez a única administração que importe. A vida é tempo, não é?


– Logo terei ainda mais tempo... Fui ver o Jung... Um método perigoso.


– Rsrs... é, há que ter cuidado com o seu uso, emoções afloram, há quem não saiba o que fazer com o que emerge.


– Sabes? Fico com Freud, mas, talvez eu tenha medo de me aprofundar. Sei lá o que encontro em mim.


– Ah!, medo de te encontrar contigo, então?


– Ah!, pode ser terrível, né? Vai que me descubro e não me gosto.


– Terrível? E tens que te gostar em tudo? Ou haveria algo de fato terrível dentro de ti, te assombrando a consciência, rsrs? Não dou importância às minhas assombrações. Afinal, o que me poderia infundir terror senão aquilo a que eu mesmo atribua condição terrificante?


– É, sei, valores... nada é terrível em si. Bem... só o tempo, que não volta mais. Isso me assusta por demais.


– O tempo, não se pode deixá-lo passar, há que se gastá-lo, vivê-lo todo. Detesto o tempo; reverencio o tempo. Proclamo que o tempo é vida, mas me parto: odeio o tempo; amo a vida.


– Então... O que se faz dele? Ou não se faz?


– Impossível prolongá-lo, mas, ainda assim, prolongá-lo, como seja possível. E nada mais se pode.


– Pode-se inventar a vida eterna. Invejo os crentes. Amém.


– É tragicômico, a gente acaba. Difícil admitir.


– No sentido de envelhecer?


– Mais. No de fim, mesmo. Fim. A flor brota, cresce, acaba, some... E nós, igual: acabamos. Isso é mesmo assombrador. Daí as fantasias de não morrer.


– A gente não quer acabar. A gente quer ir para o céu.


– Imaginação de recusa: a mais extraordinária recusa da morte. É primitiva, mas eficaz... sobrevive. E é quase universal. Cada tribo vai ao seu modo, mas vai para algum céu.


– Eu nem quero céu... o inferno me parece mais animado... só não queria acabar... O ruim é acabar... e não vai dar tempo de tudo.


– Eis o fantasma: o tempo, sempre o tempo. Daí o imperativo das opções. Há que optar; não há, mesmo, tempo para todas as coisas.


– Catar o interessante... ter sabedoria para vivê-lo, ter gosto para fruir a vida.


– Mas há sempre a angústia das escolhas, as dores pelo abandonar o não escolhido. É terrível a sensação do abandono, a eterna nostalgia culpada do abandonado. Uma saudade do como seria, se tivesse sido, ou não sido. Vá lá saber! Mas fica a interminável dúvida.


– Feliz com suas escolhas? Faria algo diferente?


– Não me arrependo, nem cabe. Gosto de mim. Se não tivesse sido tudo como foi, eu não seria quem sou. A questão que me ponho é outra: minhas escolhas... elas não se realizaram de todo, o mundo interferiu, o outro interveio.


– O outro se recusa... Tem suas próprias escolhas. O mundo não está, mesmo, para nos servir... Não podemos nos esquecer disso. É muita presunção, querer submeter o mundo aos nossos interesses.


– É... mundo ingrato, não cumpre meus caprichos, rsrs.


– Rsrs, mas nisso está toda a graça: no negociar com o mundo, nos escambos da existência.


– Conformar-se, pois?


– Pode ser, não como resignação, mas como conciliação. Vivenciando as coisas, ajustando, regateando... Não é conformismo.


– Sei... adaptar-se à realidade.


– Isso: harmonizar-se, fazer a transação necessária, sem concessões de si, mas sem passar por cima dos fatos do mundo, até porque o mundo não permitiria.


– Bem... aqui... cuidado nessa negociação. Nós nos enganamos por demais. Para justificar o que queremos, não nos furtamos em nos acanalhar.


– Ceder além da conta? Creio que muitas vezes o mundo nem nos pede... cedemos para nossos interesses menores. Nos convencemos de que era imperioso, mas fazemos de graça, ainda que constrangidamente, e vamos levando, nos explicando, nos repetindo.


– É... há que solicitar consciência, estar com atenção.


– Concessão é a palavra. Cuidado com as concessões. São necessárias, ou a vida seria uma guerra, mas há limites.


– Entendo... Tenho que estar no cuidado de mim, no que cedo... Algo ético de mim para comigo mesmo.


– Alguma ética: um combinado subjetivo que me orienta, que tem que se fazer valer. A gente percebe... a consciência até que avisa, mas, na hora... um tanto indignos, fraquejamos.


– É que... Talvez... Só se vê depois, né?


– Sim... e não, não é tão simples. Nos pomos com olhos de não querer ver.


– Mas, haveria como saber? Estaríamos, realmente, sempre lúcidos das circunstâncias?


– Por menos, a gente intui... A gente sabe, mas, tantas vezes, a gente cede, rsrs. E nem me perguntes: cede a quê? São manobras vis... Cedemos a interesses que não confessamos nem a nós mesmos.


– Rsrs, dá um desconforto, né? Por dentro... dá uma agonia. Eu já senti isso, sim. Somos caras-de-pau...


– Ah! Mas não estamos sós. Somos a humanidade! Somos todos bichos que tropeçamos na ética e caímos... ou nos jogamos... em tentação.


– É... bichos... bichos carentes, carentes de afeto, rsrs.


– Rsrs, bichos carentes de carne.


– Carentes de afeto, carentes de carne: carência... Podemos chamar de amor?

 

Léo Rosa de Andrade

Doutor em Direito pela UFSC.

Psicanalista e Jornalista.


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