Já
acompanhei acontecimentos tristes na vida de pessoas amigas. A maioria dos que
me leem, creio, sabe do que falo quando refiro acontecimentos tristes. Às vezes
alguém tem a existência como que atropelada, fica sem orientação. Os afetos
ficam oprimidos, como se as referências se invalidassem. São as marcas da
presença da falta, só sarada pela vivência do luto.
Nesses momentos, até para
dizer uma palavra de conforto, deve-se respeitosamente atentar ao modo como
cada um transita das suas fatalidades à sua busca de restabelecimento. A
estrutura psíquica, a base cultural, a formação intelectual, a ideologia
subjacente à sociabilização de uma pessoa sempre estarão presentes em cada
instante dela, inclusive nos desgraçados.
Os modos de cumprir o luto
de uma tragédia não são iguais para todos, nem tampouco os de receber
solidariedade. A travessia de um acontecimento ruim e seus desdobramentos e
implicações têm um componente de emoção muito particular, mas muitas vezes
estão previstas cerimônias sociais tão fortes que o sujeito se vê obrigado,
mesmo a contragosto, a expor-se a elas.
Nessas exposições ocorrem eventuais
gestos carinhosos, mas também se padece da interpelação inconveniente
procedimentos que menos amenizam e mais fazem prolongar a dor. Rituais de
despedida ajuntam pessoas amigas, mas abrem espaço para hipocrisias, histerias
religiosas, oportunismo de quem espera pela vulnerabilidade de alguém para
angariar vantagem.
Quando quem sofre estende
demasiadamente a passagem do sofrimento, penso, o faz com propósito purgatório.
No alongado arrastamento da própria “sofrência”, se enfrentaria com a tragédia que
o\a alcançou, se resolveria com ela, expurgaria dores, rancores, culpas. Creio
que cultivar uma dor por excessivo tempo pode até ser exercício inconsciente de
vingança inadmissível.
Os rituais, portanto,
teriam uma utilidade, porque conduziriam o ser que sofre e lhe forneceriam
meios para superação. Seja se acusando e se perdoando, seja culpando, odiando e
desculpando pessoas ou circunstâncias, haveria um processo de remissão consigo
e com o mundo. Ao fim de tudo a pessoa seria a mesma, mas seria outra, pois
renascida para a vida.
Pode ser que seja assim.
Mas é bom lembrar que esses cerimoniais são anteriores às religiões organizadas
como centro de poder. Religiões são leituras e explicações mágicas do mundo,
apenas que assumidas por poderosos estabelecidos. Leituras e explicações
mágicas espontâneas, quando capturadas e manipuladas por religiões,
convertem-se em instrumento de poder.
Não estou seguro, pois, que
esses ritos cumpram suas funções primitivas de passagem. Penso que acabaram
apropriados pelas religiões e restaram como formalidades de poder a se cumprir,
a elas se submetendo. Afinal, são um conjunto de protocolos dados que se devem
observar. Raramente alguém decide sobre os atos que cumpre, todos oferecidos
prontos por instituições.
A Wikipédia me atesta
razão; restamos submissos a meros formalismos: “Ritos de passagem são aqueles
que marcam momentos importantes na vida das pessoas. Os mais comuns são os
ligados a nascimentos, mortes, casamentos e formaturas. Em nossa sociedade, os
ritos ligados a nascimentos, mortes e casamentos são praticamente monopolizados
pelas religiões.
Já as formaturas não
costumam ser, em si, religiosas, mas frequentemente têm importantes momentos
religiosos”. A Enciclopédia Livre destaca essa maneira pela qual os episódios
de colação de grau sucedem em escolas, inclusive universidades: as casas de
ensino, havidas por espaços laicos e ilustrados, contemplam acriticamente os
costumes das religiões.
De fato, embora os ritos
vigorem, o alcance dos rituais na psique do humano atual já não é o mesmo. Hoje
há mais formalidade cerimoniosa do que cerimônia de efeito psicológico.
Contudo, seguimos apreendendo o mundo e nossa relação com ele não como relação
social de poder, mas como mágica, como resultado de intervenção divina nas
coisas e nos acontecimentos.
Uma amiga querida padece as
dores de um infortúnio. Logo acabará um ano e outro se iniciará. No seu tempo
de cumpri-lo, nas datas festivas inclusive, a minha amiga cumprirá o seu ritual
de dor. Na ocasião da virada de ano, as pessoas realizam rituais de esperança.
O primeiro de janeiro foi diferenciado dos demais dias do ano; ele marca uma
cerimônia coletiva de passagem.
Primitivamente se festejava
a época do plantio, o momento da colheita, a entrada das estações, as posições
do sol, o equinócio, o solstício. Hoje se festeja o calendário. Aliás, o
calendário em vigor, nomeado gregoriano, foi criado em 1582, pelo papa Gregório
XIII. Seus doze meses são igualmente expressão de poder divino e mundano:
prestigiam deuses e imperadores romanos.
Bem, o réveillon é ocasião
que combina crendices, comilança, bebedeira. Famílias se reúnem, namorados se
declaram, crianças gritam, adultos fogueteiam. Veste branca, pedidos a
divindades. Esperança. Muita esperança de muitas coisas que esperança não vai
resolver. Dia seguinte retorna a ordem regular da vida: algumas dores, pouca
incredulidade, muito ritual.
Rosa de Andrade
Doutor em Direito
pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista
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