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quinta-feira, 2 de setembro de 2021

FALTA-NOS A REALIZAÇÃO DE UMA MORAL HUMANA

“Sem Deus, ficamos apenas com a moral humana. O resultado é o hiperindividualismo contemporâneo. Quando a moral é baseada apenas nos princípios humanos, esse humano se resume numa figura: eu!” (Darlyson Feitosa, Veja, 26abr17).

Desimporta-me a afirmação da existência de um deus único. Deus, redigido com D maiúsculo, generaliza um deus particular sobre toda a humanidade. Os deuses do mundo, que são muitos, acabam unilateralmente desconsiderados.


Diversas culturas empenharam-se em universalizar sua divindade. Na linhagem semita, os judeus, “povo escolhido” reservam-na para si, mas os cristãos catequizaram o Velho e o Novo Mundo; os muçulmanos desforçam-se repetir o feito.


Deuses são violência real. Dos vários deuses advindos das diversas interpretações da Tradição Ocidental, todos foram impostos por impérios. Impérios mercantis, impérios governamentais armados, impérios abençoados por impérios de fé.


Isso “faz parte”, é História ao alcance de quem se interessa. Disso jamais resultou vida pacificada, igualdade entre pessoas e menos ainda entre gêneros, ou liberdade de qualquer ordem. A paz religiosa não é fraterna, é totalizante.


As religiões não deram, é fato, jeito sensato no mundo. Não há um único resultado conferível. E não se olvide que religiões só deixam de se impor por violência quando não dispõem de poder para fazê-lo; e seguem à espreita para tentá-lo.


No exercício da violência, as religiões sempre foram minuciosas. Jogam os grandes jogos, controlam os sistemas educacionais, determinam os modos de organizar as famílias, produzem as condições individuais de interpretação do mundo.


Mas a afirmação inicial é verdadeira. Dado que os deuses andam enfraquecidos, estamos sentindo falta de “sua” moral. Sem moral divina, restamos compreendendo, com gosto e a contragosto, que a moral possível é a moral humana.


A (alguma) moral é uma questão com a qual a humanidade se depara e à qual deve dar solução. Sem morais divinas, ficamos com a disponibilidade de morais humanas. Disponíveis se inventadas; se não as inventarmos, não as teremos.


Como deuses sempre foram usados por poderosos como legitimadores de seus interesses, como donos de poder deram-se e se dão como terceiros intervenientes da “legítima” moral divina, não aprendemos a agir por conta própria.


Vindos desse mau hábito de aceitar morais deusificadas conforme a interpretação de seus poderosos intermediários – morais “reveladas” – pomo-nos pasmos diante da necessidade de dar jeito numa moral politicamente convencionada.


Sim, é argumentável que o Iluminismo produziu uma moral humana. Eu diria que iniciou a fazê-lo, que propôs seus princípios na Carta dos Direitos do Homem e do Cidadão. Na Tradição Ibérica, todavia, ela é mais uma notícia do que um fato.


No Brasil, recusamos política. Preferimos, sem um deus que nos dê solução (ou com um que não a dá), uma solução deus ex machina: uma potência dramatúrgica que desça em cena com e arbitrariamente resolva um impasse que esteja posto.


Nem a esquerda, nem a direita; ninguém porta a solução. Não há heróis. Aliás, heróis raramente fazem História; heróis são produzidos pela História. Em geral, são farsas. Temos, pois, que dar conta de nós. Seja: inventar nossa moral pública.


Como o “maior país cristão do mundo” já deveríamos nos ter dado conta de que a divindade não nos ofereceu uma moral condizente com a vida pública republicana. Somos indiferentes ao próximo até as entranhas. Sim, há exceções.


Exceções não bastam. Hannah Arendt: “Em política não se conjuga o verbo na primeira pessoa do singular”. Ou falamos no plural, ou cada um que se vire por própria conta. Na vida em comum, resolver-se no singular é generalizar o eu; não dá.


Não cabe o particular como moral pública. O pastor Feitosa pede pela moral da sua divindade. Nosso tempo requer moral humana. Moral humana: a realização dessa moral será democraticamente realizada no cotidiano político; é coisa secular.


Não há “revelação” na construção da pátria. A Modernidade inventou o indivíduo. Que o indivíduo subsista. Eu sou eu, como indivíduo. Como moral pública, careço de ser nós. Feitosa pode legitimar sua posição, mas na peleja política. Amém,

 


Léo Rosa de Andrade

Doutor em Direito pela UFSC.

Psicanalista e Jornalista.


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