“Sem Deus, ficamos apenas com a moral humana. O resultado é o hiperindividualismo contemporâneo. Quando a moral é baseada apenas nos princípios humanos, esse humano se resume numa figura: eu!” (Darlyson Feitosa, Veja, 26abr17).
Desimporta-me a afirmação
da existência de um deus único. Deus, redigido com D maiúsculo, generaliza um
deus particular sobre toda a humanidade. Os deuses do mundo, que são muitos,
acabam unilateralmente desconsiderados.
Diversas culturas
empenharam-se em universalizar sua divindade. Na linhagem semita, os judeus,
“povo escolhido” reservam-na para si, mas os cristãos catequizaram o Velho e o
Novo Mundo; os muçulmanos desforçam-se repetir o feito.
Deuses são violência real.
Dos vários deuses advindos das diversas interpretações da Tradição Ocidental,
todos foram impostos por impérios. Impérios mercantis, impérios governamentais
armados, impérios abençoados por impérios de fé.
Isso “faz parte”, é
História ao alcance de quem se interessa. Disso jamais resultou vida
pacificada, igualdade entre pessoas e menos ainda entre gêneros, ou liberdade
de qualquer ordem. A paz religiosa não é fraterna, é totalizante.
As religiões não deram, é
fato, jeito sensato no mundo. Não há um único resultado conferível. E não se
olvide que religiões só deixam de se impor por violência quando não dispõem de
poder para fazê-lo; e seguem à espreita para tentá-lo.
No exercício da violência,
as religiões sempre foram minuciosas. Jogam os grandes jogos, controlam os
sistemas educacionais, determinam os modos de organizar as famílias, produzem
as condições individuais de interpretação do mundo.
Mas a afirmação inicial é
verdadeira. Dado que os deuses andam enfraquecidos, estamos sentindo falta de
“sua” moral. Sem moral divina, restamos compreendendo, com gosto e a
contragosto, que a moral possível é a moral humana.
A (alguma) moral é uma
questão com a qual a humanidade se depara e à qual deve dar solução. Sem morais
divinas, ficamos com a disponibilidade de morais humanas. Disponíveis se
inventadas; se não as inventarmos, não as teremos.
Como deuses sempre foram
usados por poderosos como legitimadores de seus interesses, como donos de poder
deram-se e se dão como terceiros intervenientes da “legítima” moral divina, não
aprendemos a agir por conta própria.
Vindos desse mau hábito de
aceitar morais deusificadas conforme a interpretação de seus poderosos
intermediários – morais “reveladas” – pomo-nos pasmos diante da necessidade de
dar jeito numa moral politicamente convencionada.
Sim, é argumentável que o
Iluminismo produziu uma moral humana. Eu diria que iniciou a fazê-lo, que
propôs seus princípios na Carta dos Direitos do Homem e do Cidadão. Na Tradição
Ibérica, todavia, ela é mais uma notícia do que um fato.
No Brasil, recusamos
política. Preferimos, sem um deus que nos dê solução (ou com um que não a dá),
uma solução deus ex machina: uma potência dramatúrgica que desça em cena com e
arbitrariamente resolva um impasse que esteja posto.
Nem a esquerda, nem a
direita; ninguém porta a solução. Não há heróis. Aliás, heróis raramente fazem
História; heróis são produzidos pela História. Em geral, são farsas. Temos,
pois, que dar conta de nós. Seja: inventar nossa moral pública.
Como o “maior país cristão
do mundo” já deveríamos nos ter dado conta de que a divindade não nos ofereceu
uma moral condizente com a vida pública republicana. Somos indiferentes ao
próximo até as entranhas. Sim, há exceções.
Exceções não bastam. Hannah
Arendt: “Em política não se conjuga o verbo na primeira pessoa do singular”. Ou
falamos no plural, ou cada um que se vire por própria conta. Na vida em comum,
resolver-se no singular é generalizar o eu; não dá.
Não cabe o particular como
moral pública. O pastor Feitosa pede pela moral da sua divindade. Nosso tempo
requer moral humana. Moral humana: a realização dessa moral será
democraticamente realizada no cotidiano político; é coisa secular.
Não há “revelação” na construção
da pátria. A Modernidade inventou o indivíduo. Que o indivíduo subsista. Eu sou
eu, como indivíduo. Como moral pública, careço de ser nós. Feitosa pode
legitimar sua posição, mas na peleja política. Amém,
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito
pela UFSC.
Psicanalista e
Jornalista.
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