O documento orienta médicos do Estado, permitindo a interação entre pacientes e seus familiares em situações que impossibilitam o contato pessoal
A autonomia do paciente em decidir sobre práticas
médicas que serão ou não realizadas em seu corpo, após devidamente esclarecido,
é uma conquista da Medicina moderna. O mesmo princípio bioético se aplica ao
uso da imagem do paciente, que deve ser o real detentor do poder de autorizá-lo
ou não. A garantia de tal direito é o ponto central de Resolução
publicada pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) em
04/05/2021. O documento se destina a orientar os médicos do Estado sobre
o uso ético das videochamadas, permitindoa interação entre pacientes e seus
familiares em situações que impossibilitam o contato pessoal entre eles em
hospital – como as surgidas em virtude de uma pandemia.
Entre outros pontos, a Resolução deixa claro que os
dispositivos tecnológicos como celulares e tablets se tornaram “valiosos” em um
contexto que impede visitas e acompanhantes, especialmente para permitir a
humanização do atendimento e o contato de entes queridos. Contudo, também
reforça que direitos humanos fundamentais e constitucionais nunca podem ser
menosprezados, ainda que seja em fase de sobrecarga à saúde pública, como a
gerada pela magnitude alcançada pela covid-19. Por isso, atrela a “visita
por videochamada” ao respeito à privacidade do paciente e dos demais que
compartilham a mesma unidade de internação, assim como empodera o paciente para
que seu desejo quanto ao uso ou não de sua imagem seja conhecido mesmo quando
venha a ficar impedido de opinar.
Assim, conforme direciona o Cremesp, se o paciente
mantiver a capacidade de consentir, as videochamadas ocorrerão de acordo com
sua decisão. Do contrário, no momento da internação, o médico contará com
duas alternativas: na primeira, o paciente poderá designar previamente um
representante, a quem caberá responder por ele quanto à videochamada se
estiver, por exemplo, sedado ou em coma. Na segunda, o profissional
questionaria a existência de diretivas antecipadas de vontade, instrumento
ético permitido no Brasil e a ser elaborado enquanto o atendido puder expressar
sua autonomia.
Neste caso, orientações específicas quanto às
interações em videochamada devem estar devidamente registradas no prontuário.
Elas incluem não apenas a vontade ou não de participar das videochamadas, mas
também quem da família poderá participar, de acordo com a vontade manifesta
pelo paciente.
Outras diretrizes importantes e presentes na
resolução abarcam a necessária diferenciação entre videochamadas e outros tipos
de filmagens e/ou fotos que não se enquadrarem nas definições previstas no
documento.
Autonomia do paciente: o passado que nos ensina a
nunca mais ignorá-la
Um dos marcos sobre a importância de se preservar a
autonomia do paciente foi um estudo antiético realizado na pacata cidade de
Tuskegee, no Alabama (EUA), no qual 600 pacientes afrodescendentes foram
mantidos sem tratamento contra a sífilis por cerca de quatro décadas, mesmo
depois de descobertos os antibióticos necessários. Objetivo: usar seres humanos
como cobaias a pretexto de avaliar a história natural da doença.
A indignação surgida do episódio, além da trazida
por experimentos perpetrados por nazistas, durante a 2ª guerra, culminaram em
documentos bioéticos como Relatório Belmont e Declaração de Helsinque, nos
quais é destacada a necessidade de garantir a autonomia, o consentimento –
enfim, a dignidade humana embasada no poder de decisão dos indivíduos – ainda
que seja no decorrer de circunstâncias atípicas, como as resultantes de uma
pandemia.
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