Determinadas características estruturais que conferem ao coronavírus SARS-CoV-2 grande eficiência para interagir com seus receptores-alvo nas células humanas e desencadear a COVID-19 poderiam inspirar o desenho de nanopartículas sintéticas capazes de carrear e liberar medicamentos de forma mais bem controlada, que poderiam ser usadas no tratamento de tumores, infecções e inflamações.
A sugestão foi feita por pesquisadores do Centro Nacional de
Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) em um artigo publicado
com destaque na revista Nano Today. O
trabalho, baseado em estudos de correlação, tem apoio da
FAPESP.
“O SARS-CoV-2 é uma nanopartícula extremamente eficiente na
interação com seus receptores-alvo e pode servir de modelo para o
desenvolvimento de nanopartículas sintéticas para aplicações biológicas mais
direcionadas”, diz à Agência FAPESP Mateus Borba Cardoso,
pesquisador do CNPEM e um dos autores do estudo.
De acordo com Cardoso, os vírus, em geral, são nanopartículas
naturais em escala nanométrica (da bilionésima parte do metro) que interagem de
modo preciso e eficiente com o maquinário biológico dos organismos e, graças a
características de estrutura homogeneamente distribuídas, conseguem excelentes
resultados de infecção e, consequentemente, de replicação.
No caso do SARS-CoV-2, um dos fatores que permitiram ao vírus se
tornar altamente contagioso foi justamente a eficiência no direcionamento.
A principal porta de entrada do novo coronavírus no corpo humano
é o nariz, de onde o vírus se espalha para todo o trato
respiratório. Nessa região, se encontra alojada nas células epiteliais dos
cílios móveis a proteína ACE2, com a qual o SARS-CoV-2 se liga para viabilizar
a infecção.
A interação do SARS-CoV-2 com os cílios micrométricos das
células epiteliais do nariz apresenta vantagens consideráveis para o vírus.
Primeiro, porque o comprimento dos cílios é cerca de 50 vezes o tamanho do
vírus – de mais ou menos 5 micrômetros (μm) contra aproximadamente 100
nanômetros (nm). Em segundo lugar, porque a interação com o vírus prejudica a
função adequada das células em estágios posteriores da doença, inibindo a
depuração de muco que poderia prevenir futuras infecções virais, sublinham os
pesquisadores.
“A chave que desencadeia a COVID-19 é uma interação guiada entre
o SARS-CoV-2 com o receptor ACE2 nas células nasais, com o qual apresenta uma
afinidade de ligação dez vezes mais forte do que o SARS-CoV, embora ambos
compartilhem 76% da sequência genética da proteína spike [com a qual o vírus se liga ao receptor ACE2
das células humanas]”, afirma Cardoso.
No SARS-CoV-2 as proteínas spikes estão
distribuídas homogeneamente na superfície do vírus, de acordo com padrões de
geometria e simetria bem definidos. Esse arranjo meticuloso, com espaços
ordenados de 15 nm entre as proteínas spikes, otimiza a
replicação e transforma uma série de interações fracas em fortes, aumentando as
chances de entrada e replicação do vírus nas células.
A organização espacial meticulosa entre as proteínas também
aumenta a probabilidade de interação uma vez que permite que estruturas
flexíveis da spike e da ACE2 assumam
diferentes orientações espaciais, favorecendo os pontos de contato ativo entre
essas proteínas. Essa flexibilidade tão depurada do maquinário viral não é
comumente encontrada em outros coronavírus.
Após ser ativada, a proteína spike também
muda radicalmente sua conformação e expõe o domínio de ligação ao receptor
(RBD, na sigla em inglês) para acoplar com a ACE2 com alta afinidade, afirmam
os pesquisadores.
“Estamos propondo usar esses conceitos de especificidade e de
eficiência do SARS-CoV-2, que consegue interagir muito seletivamente com as
células humanas, para desenvolver nanopartículas com características que o
vírus apresenta de modo que se liguem a receptores de uma determinada região
tumoral, por exemplo. Dessa forma, seria possível diminuir drasticamente as
doses e os efeitos secundários de quimioterápicos”, avalia Cardoso.
Inspiração para nanomedicina
De acordo com os pesquisadores, um dos maiores desafios para
imitar as características do SARS-CoV-2 na produção de nanopartículas
sintéticas está no controle preciso da organização de superfícies dessas
estruturas. Para se obter algo similar ao nível organizacional dos vírus,
os designers de nanomateriais precisam superar os
atuais métodos e incorporar abordagens sintéticas ainda mais precisas, como
estratégias de funcionalização que permitam o controle do distanciamento médio
entre grupos bioativos.
Os métodos de funcionalização de nanopartículas utilizados hoje
não permitem que as estruturas tenham uma superfície homogênea como a do
SARS-CoV-2, o que provavelmente dificulta a interação específica entre grupos
ativos e seus receptores.
Outro desafio importante está relacionado com a alta
seletividade, que garante a precisa "responsividade" aos eventos
biológicos. Os receptores precisam superar obstáculos de interação e passar
ilesos pelo reconhecimento do sistema imunológico até que encontrem os alvos
que permitam a entrada nas células. A falta de eficácia de direcionamento
frequentemente leva nanopartículas funcionalizadas a se acumularem em células
indesejadas e tecidos enquanto aumentam os efeitos relacionados à toxicidade.
Para isso, será preciso considerar a combinação racional de
conhecimentos relacionados aos arranjos estruturais da superfície do vírus para
que, em contato com o receptor, promovam reações pontuais com maior eficiência,
indicam os pesquisadores.
“Desenvolvemos no CNPEM há mais de uma década uma plataforma
para produção de nanopartículas para aplicações em nanomedicina. Nossas
partículas, assim como os vírus, vêm sendo mutadas para melhorarmos cada vez
mais a eficiência delas”, afirma Cardoso.
O artigo Nano-targeting lessons from the
SARS-CoV-2 (DOI: 10.1016/j.nantod.2020.101012), de I. R. S.
Ribeiro, R. F. da Silva, C. P. Silveira, F. E. Galdino e M. B. Cardoso, pode
ser lido na revista Nano Today em www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S174801322030181X.
Elton
Alisson
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/estrutura-do-novo-coronavirus-pode-inspirar-desenho-de-nanoparticulas-para-uso-terapeutico/35002/
Nenhum comentário:
Postar um comentário