Espécies são afetadas tanto pelos itens
descartáveis que boiam e são ingeridos, quanto pelo microplástico que é
absorvido pelos organismos
Entre as ameaças
aos ecossistemas marinhos e à saúde de nossos oceanos, a poluição por plástico
é uma das mais nefastas e preocupantes. A estimativa mundial é de que a cada
minuto, um caminhão de lixo plástico seja jogado ao mar. Uma vez nos oceanos,
esses itens de plástico descartável, como sacolas, canudos, pratos, talheres,
não se restringem à superfície do mar e nem ao local de origem -- muito dessa
poluição segue arrastada pelas correntes marinhas. Há presença de plástico
mesmo em lugares considerados paradisíacos, sem a presença ostensiva de humanos.
No trajeto, essa mancha de lixo boiando pode tanto ser ingerida por mamíferos,
aves, peixes e tartarugas, quanto se enroscar em seus corpos, tirando sua
mobilidade, podendo levá-los à asfixia.
“À medida em que o
plástico continua a inundar os oceanos - no Brasil, a estimativa é de 325 mil
toneladas/ano -, a lista de espécies marinhas afetadas por detritos plásticos
aumenta. Dezenas de milhares de organismos marinhos estão ingerindo plásticos,
desde zooplâncton [pequenos animais semelhantes a insetos], peixes e
tartarugas, mamíferos e aves marinhas, muitos deles já ameaçados de extinção.
As espécies marinhas não apenas estão tendo contato com resíduos da produção
humana, mas também estão morrendo devido a eles”, alerta a gerente de campanhas da Oceana Brasil, a engenheira
ambiental Lara Iwanicki, uma das autoras do estudo Um
Oceano Livre de Plásticos,
publicado em 2020 e que se tornou referência sobre o assunto no país.
O relatório traz alguns números impactantes. Mais de 800 espécies de mamíferos,
aves marinhas, peixes e tartarugas estão sendo impactadas pelo emaranhamento de
redes de pesca ou pela ingestão de plástico. Cerca de 90% de espécies de aves
marinhas e tartarugas já consumiram plásticos. Dezessete por cento das espécies
afetadas por tais detritos estão listadas como ameaçadas ou quase ameaçadas de
extinção pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN).
Pesquisador do Laboratório de
Informática da Biodiversidade e Geoprocessamento da Universidade do Vale do
Itajaí (Univali), André Barreto explica que o impacto do plástico na vida
marinha tem graus diferenciados e depende da espécie. “Para as
tartarugas, com certeza é muito sério, especialmente a tartaruga-verde. Mas
para golfinhos e baleias, não estaria entre as principais ameaças à
sobrevivência do grupo. Nas aves, também há bastante diferença. Para as aves
oceânicas, aparentemente o problema é maior, para as costeiras nem tanto. Tudo
depende do modo de vida delas”.
Essa macro poluição plástica ainda dá origem a um outro problema relevante. Uma
vez no mar, o plástico não se decompõe -- ele se degrada em pedaços cada vez
menores e dá origem aos microplásticos. Um inimigo nem sempre visível a olho
nu, mas que tem sido detectado em organismos das mais variadas espécies
marinhas e, para espanto da comunidade científica, também no ser humano (já
detectado no sangue, na placenta, nos pulmões e, mais recentemente, no leite
materno).
Toda essa situação é um alerta mundial para a segurança do ecossistema marinho
e de suas espécies, e consequentemente, para a saúde humana. No Brasil, os
dados, ainda que subestimados, indicam que 1 em cada 10 animais que apareceram
mortos em praias das regiões Sul e Sudeste - únicas que mantêm uma estrutura de
pesquisa e monitoramento ligados às bacias da Petrobras - tiveram a ingestão de
plástico como causa do óbito.
Essas pesquisas trazem números assustadores sobre animais necropsiados. Entre
2015 e 2019, de 29.010 análises em corpos de golfinhos, baleias, aves e
répteis, 3.725 tinham algum tipo de detrito não natural no organismo.
Aproximadamente 13% foram a óbito diretamente causado pelo consumo desses
poluentes, sendo que 85% eram de espécies ameaçadas de extinção.
Essas análises apontaram a presença de diversos materiais. Havia sacolas de
embalagens, tampas de caneta e de garrafas PET, botões, buchas de parafuso,
pulseiras, canudos, lacres de alimentos embutidos, palitos, copos descartáveis
e outros materiais descritos como “plásticos e microplásticos”. Os cientistas
também encontraram os polímeros sintéticos que derivam do plástico, a exemplo
de fios de nylon, linhas e redes de pesca, esponjas de limpeza, fitas adesivas
e isolantes, cordões e fibras sintéticas.
O processo de ingestão de detritos
provoca trauma físico seguido de obstrução no aparelho digestivo. Esse plástico
no estômago pode transmitir ao animal a sensação de saciedade, fazendo com que
ele pare de buscar alimentos, resultando em inanição e morte. A maioria desses
itens boia na superfície, o que ajuda a compreender o fato de que 83% das
mortes associadas ao lixo marinho terem sido de tartarugas, que confundem o
plástico com alimentos naturais, como as águas vivas, peixes e algas.
“As tartarugas formam o grupo mais
afetado. Essa mortalidade extra por causa da poluição torna ainda mais
importantes os projetos que protegem as áreas de reprodução. Temos de garantir
que estão nascendo filhotes suficientes para poder compensar essa mortalidade
extra causada pelo lixo”, aponta André, que, apesar de trabalhar com os dados
em laboratórios, ficou impressionado com um caso de uma toninha que morreu de
inanição por causa de um lacre de garrafa PET que a impedia de abrir a boca.
“Foi o Biopesca, de São Paulo, que achou esse animal”.
UM MUNDO SEM PLÁSTICO
Um dos mais respeitados cientistas do mundo, especialista em
pesca, Daniel Pauly destaca que, até a década de 1950, os animais marinhos tinham que lidar apenas
com detritos e lixo na forma de substâncias orgânicas ou objetos que eram
produzidos por plantas ou animais. Isso incluía madeira, fibra, carne podre,
ossos ou outros materiais que poderiam ser degradados por bactérias e fungos e,
assim, transformados em nutrientes ou convertidos em minerais inofensivos.
“Por bilhões de anos, esses organismos microscópicos
reciclaram matéria orgânica na Terra e em nossos oceanos, e literalmente
mantiveram nosso mundo limpo. Isso mudou radicalmente com o surgimento dos
plásticos”, explica Pauly. Fundador e
principal pesquisador do projeto Sea Around Us, do Instituto de Oceanos e Pesca
da Universidade de Columbia Britânica, ele também é membro do Conselho da
Oceana.
Pauly chama atenção para o perigo dos microplásticos
que têm a propriedade de repelir água (lipofílico), assim como ocorre com os
piores venenos que a indústria química produz — DDT (sigla de
diclorodifeniltricloroetano), PCB (bifenilas policloradas), dioxinas, etc.
“Isso significa que cada pedaço deste tipo de microplástico no oceano atua como
uma esponja minúscula para os vários venenos que as indústrias química e de
energia descartaram em vias navegáveis ou no ar, e que acabam no mar, onde se
acumulam”.
Dessa forma, esses produtos químicos se grudam às microfibras, transformando-as
em pequenas pílulas de veneno que acabam sendo consumidas por zooplâncton; que,
por sua vez, armazenam substâncias lipofílicas na gordura de seus pequenos
corpos. “O nome disso é bioacumulação. O zooplâncton é, então, consumido por
pequenos peixes, como sardinhas e anchovas, que são depois consumidos pelo atum
e depois … bon appétit”, lamenta Pauly.
Em um recente relatório internacional, ainda não traduzido para o
português, a Oceana Europa faz um alerta sobre como o impacto do plástico se
multiplica em habitats biogênicos, ou seja, formados por espécies que servem de
habitat para outras, como recifes de corais, marismas (vegetações que ocorrem em região de encontro entre o rio e o
mar) e florestas de algas. Esses organismos sofrem danos como espécies e
como formadores de habitat, já que o problema se estende à biodiversidade que
depende deles.
“A maior parte do plástico que chega ao oceano se acumula no fundo do mar, onde
se encontram muitos desses ecossistemas sensíveis”, diz o líder de expedições
da Oceana na Europa, Ricardo Aguilar. “Nossa pesquisa científica no mar
descobriu que várias espécies, em diferentes tipos de habitat, estão expostas à
poluição do plástico”.
Os efeitos disso ainda não são completamente conhecidos. No entanto, há
evidências de que os corais parecem ainda mais atraídos pelo microplástico do
que por suas fontes naturais de nutrição. Estudos mostraram que quando os
corais entram em contato direto com fragmentos de plásticos, a probabilidade de
contraírem uma doença aumenta de 4% para impressionantes 89%.
O analista de campanhas da Oceana, Iran Magno, explica porque insistir na atual
produção de plástico é preocupante: “Estudos apontam que se mantivermos esse
ritmo de produção, o volume de plástico acumulado no oceano será quatro vezes
maior em 2040. O enfrentamento do problema requer a revisão do modelo
produtivo, uma tendência que tem acontecido em diversas regiões do planeta.
Países tão distintos como o Canadá e a Índia já estabeleceram medidas
regulatórias para o plástico. Precisamos fazer o mesmo no Brasil, com
urgência!”, conclui ele.
O país já deu o primeiro passo nesse sentido. Desde setembro deste ano está em
trâmite no Senado Federal o Projeto
de Lei (PL) 2524/2022, que propõe um marco
regulatório para a Economia Circular e Sustentável do Plástico no Brasil.
“Agora, precisamos pressionar os parlamentares a abraçarem essa
causa e aprovarem esse projeto de lei. Todas as pessoas podem
acessar
o PL pela internet e reforçar a sua
importância, posicionando-se a favor da redução da produção de plástico e de
seus graves impactos socioeconômicos e ambientais”, conclui Magno.