Grupo que envolve cientistas da UFSCar, da Embrapa e colaboradores
internacionais mostra que a biomassa descartada de baixo custo pode ser
convertida em bioplásticos, produtos eletrônicos, equipamentos para geração,
armazenamento e transmissão de energia e outros dispositivos de alto valor
agregado (
fotos: acervo dos pesquisadores)
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Entre 118 e 138 milhões de toneladas
de lixo orgânico são geradas anualmente em todo o mundo. Dessas, cerca de 100
milhões de toneladas correspondem a resíduos da cadeia de produção e
distribuição de alimentos. Apenas 25% do montante é reaproveitado. Os outros
75% são simplesmente “jogados fora”, configurando um grande desperdício de
recursos potenciais e um enorme impacto para o meio ambiente.
Esses números foram apresentados
num relatório publicado
em 2018 pela European Environment Agency. Embora constituam a mais recente
tentativa de totalização disponível, estão provavelmente subestimados, pois
correspondem a uma base de dados de 2011.
Transformar resíduos em recursos –
ou, como dizem os norte-americanos, transitar from trash to cash (do
lixo ao dinheiro) – é um dos vetores da chamada economia circular. Quando esses
resíduos são advindos da biomassa, caracteriza-se a bioeconomia circular. O
tema foi explorado em estudo recente publicado na revista Advanced Materials, no artigo The Food–Materials Nexus: Next
Generation Bioplastics and Advanced Materials from Agri-Food Residues,
tendo sido inclusive destacado na
contracapa da revista – uma das de maior impacto na área.
“Nós, que já enxergamos diferentes
tipos de resíduos como matéria-prima há mais de uma década, fizemos uma revisão
crítica de toda a literatura e reposicionamos o estado da arte nas estratégias
para transformar perdas e desperdícios agroalimentares em bioplásticos e
materiais avançados. Procuramos, mas não encontramos argumentos para não
fazê-lo. É um ganha-ganha”, diz Caio Gomide Otoni,
professor do Departamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de
São Carlos (DEMa-UFSCar), idealizador do grupo maTREErials e primeiro autor
do artigo.
Como
alternativa às modalidades mais rústicas e ambientalmente duvidosas de
aproveitamento dos resíduos agroindustriais, como, por exemplo, seu emprego na
alimentação do gado, o estudo mostra que a biomassa descartada ou subutilizada,
de baixo custo, pode ser convertida em bioplásticos e materiais avançados,
utilizáveis em uma ampla gama de dispositivos de alto valor agregado.
As
aplicações englobam embalagens multifuncionais, inclusive embalagens
antivirais, antimicrobianas e antioxidantes; equipamentos eletrônicos
flexíveis; dispositivos biomédicos; equipamentos para geração, armazenamento e
transmissão de energia; sensores; materiais para isolamento termoacústico;
cosméticos etc.
“O nexo alimentos-materiais-energia é
muito relevante para a bioeconomia circular. Nosso objetivo foi apresentar as
estratégias mais avançadas para desconstruir resíduos agroalimentares;
converter o resultado em blocos de construção monoméricos, poliméricos e
coloidais; e, com base neles, sintetizar materiais avançados”, afirma Daniel Souza Corrêa,
pesquisador do Laboratório de Nanotecnologia para o Agronegócio (LNNA) da
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em São Carlos, professor
orientador nos programas de pós-graduação em Química e Biotecnologia da UFSCar
e outro autor do artigo.
A conversão de perdas e desperdícios
na cadeia de produção e distribuição de alimentos em “materiais verdes” para a
indústria avançada é uma opção emergente nas políticas dos países mais
desenvolvidos, como o European Green Deal (Pacto
Ecológico Europeu). Diz a página oficial da Comissão Europeia: “A bioeconomia
circular maximiza o uso de fluxos laterais e residuais da agricultura,
processamento de alimentos e indústrias de base florestal, reduzindo assim a
quantidade de resíduos depositados em aterros”.
Como
acrescenta o artigo em pauta, se a estratosfera for tomada como um limite, não
há descarte. Não existe a opção de “jogar o lixo fora” porque não há um “fora”
para onde seja viável descartar o lixo. Então, entre cobrir o planeta de lixo,
como ainda vem sendo feito, ou transformar o lixo em uma formidável fonte de
recursos, como é possível fazer, a escolha racional parece bem clara.
“A composição complexa e heterogênea
da biomassa derivada de FLW [food loss and waste,
termo em inglês para perda e desperdício de comida] representa um desafio
tecnológico e econômico. Temos de enfrentar o que chamamos de ‘recalcitrância
da biomassa em se desconstruir’. Outro fator adverso é a sazonalidade da produção
agroindustrial. Determinados resíduos são abundantes em certas épocas do ano e
escassos em outras. Quando disponíveis, a própria composição é, geralmente,
variável. Mas o principal obstáculo a um upcycling [reutilização]
em larga escala é de natureza política. A esperança é que startups e empresas
altamente inovadoras rompam essas barreiras e conduzam o processo adiante”,
pondera Otoni.
As vias tecnológicas para isso
existem, como mostra o artigo. E seus autores já as dominam, em escala de
bancada, ou, dependendo do caso, em escalas semipiloto ou piloto. “Há vários
exemplos a mencionar, incluindo trabalhos com produção de materiais a partir de
resíduos de manga, banana, trigo, caju etc.”, descreve Henriette Monteiro Cordeiro de
Azeredo, outra autora do artigo e pesquisadora do LNNA da
Embrapa.
Nas
imagens que acompanham esta reportagem, materiais resultantes do processamento
mínimo da cenoura exemplificam potencial para conversão em bioplásticos
mediante processo, em escala semipiloto, realizado no LNNA.
Além
disso, os pesquisadores produzem espumas antimicrobianas a partir de bagaço de
cana-de-açúcar; embalagens derivadas de quitina extraída das carapaças de
crustáceos e insetos; e partículas para estabilizar emulsões, com potencial de
aplicação nas indústrias de fármacos, cosméticos e tintas.
Como se
percebe, essas pesquisas estão fortemente afinadas com a economia do país, que
se destaca como o maior produtor mundial de cana-de-açúcar e de cítricos, além
de ocupar também posição de destaque mundial na produção de muitos outros
alimentos. Ademais, deve-se considerar que uma fonte altamente significativa de
perdas e desperdício de alimentos está associada a frutas e hortaliças, das
quais cerca de um terço da produção é perdida ao longo da cadeia.
“Muitos
desses FLW contêm elevados níveis de vitaminas, minerais, fibras e proteínas
que, idealmente, poderiam ser convertidos de volta em alimentos. No entanto,
devido aos padrões alimentares, a maioria dos FLW são microbiologicamente e
sensorialmente inadequados e, assim, preteridos. Daí a alternativa de converter
os resíduos em plataformas químicas e materiais úteis, potencialmente em
dispositivos com alto valor agregado. Devido ao grande e crescente volume de
FLW, existe um interesse genuíno por parte dos produtores de alimentos em
valorizar tais fluxos”, sublinha Otoni.
Um exemplo é a produção de
bioplásticos comestíveis desenvolvida por Luiz Henrique Capparelli Mattoso,
um dos líderes dessa linha de pesquisa no LNNA da Embrapa.
A pesquisa é conduzida em rede, com
contribuições de dezenas de pesquisadores engajados no tema. O artigo em pauta
é também assinado por Bruno Mattos, pesquisador da
Aalto-yliopisto (Finlândia); Marco Beaumont,
pesquisador na BOKU Wien (Áustria); e Orlando
Rojas, diretor do BioProducts Institute da
University of British Columbia (Canadá).
Segundo Mattos, “a qualidade
dos building blocks [blocos de montar] obtidos de
biomassa residual é a mesma quando comparada a fontes mais puras e menos
processadas, como algodão ou polpa celulósica. Os resíduos, no entanto, por
conterem diversas outras moléculas residuais, como pectinas ou lignina,
oferecem uma paleta maior de propriedades que podem ser exploradas para a
introdução de funcionalidades nos bioplásticos”.
O financiamento concedido pela FAPESP
a essa linha de pesquisa inclui os seguintes apoios: 14/23098-9; 17/12174-4; 17/22401-8; 18/22214-6; 20/11104-5.
O artigo The Food–Materials Nexus: Next Generation Bioplastics and Advanced
Materials from Agri-Food Residues pode ser acessado na íntegra
e de forma gratuita em https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/adma.202102520.
José Tadeu Arantes
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/estudo-indica-caminhos-para-transformar-lixo-em-materiais-para-a-industria-avancada/37493/