Enquanto a população mantém a atenção voltada a restaurantes e estabelecimentos comerciais, os números mais recentes do Ministério da Saúde revelam um dado incômodo: a maior parte dos surtos de doenças transmitidas por alimentos (DTHA) no Brasil acontece dentro de casa.
Um levantamento do Ministério da Saúde revelou que, entre
2014 e 2023, mais de um terço (34%) dos 6.847 surtos registrados ocorreu em
residências — número que supera em mais de duas vezes os casos registrados em
restaurantes e padarias (14,6%).
A informação desmonta uma crença popular: a de que o maior
risco à saúde está ao comer fora. Na verdade, o ambiente doméstico também
esconde perigos silenciosos que muitas vezes são ignorados. Um deles está no
que se bebe. E não, não basta confiar no tratamento da companhia de saneamento.
“Mesmo quando falamos de regiões com abastecimento regular e
tratamento municipal adequado, isso não significa que a água que chega ao copo
está segura”, afirma Paula Eloize, mestre em segurança
dos alimentos pela Universidade de Lisboa e referência nacional no tema.
“O que muitas pessoas esquecem é que o percurso da água até
a torneira envolve caixas d’água mal higienizadas, encanamentos antigos ou com
microfissuras e até instalações contaminadas dentro da própria residência”,
acrescenta.
Segundo ela, não é incomum encontrar reservatórios com limo,
restos de sujeira e até insetos mortos em vistorias domiciliares. “A água pode
sair potável da estação, mas não chegar potável até o consumo.
E é aí que mora o perigo. A caixa d’água precisa ser
higienizada pelo menos a cada seis meses, com produto adequado e escovação
manual das paredes internas. Sem isso, você está exposto a contaminações que
não vê”, reforça Paula Eloize.
Microrganismos invisíveis, consequências visíveis
O consumo de água contaminada está diretamente associado a
doenças como hepatite A, cólera, giardíase, febre tifóide e diversas infecções
intestinais. Os sintomas mais comuns incluem náusea, vômitos, diarreia, febre e
desidratação.
Em casos mais graves, especialmente entre crianças, idosos e
pessoas imunocomprometidas, pode haver necessidade de internação — o que gera
também impacto direto nos cofres públicos.
Estima-se que o Brasil gaste anualmente mais de R$ 99
milhões com internações causadas por doenças de origem hídrica, segundo
levantamento do DATASUS.
Além da água ingerida diretamente, há riscos associados ao
preparo de alimentos. Paula Eloize alerta: “A água da torneira pode ser usada
para cozinhar, sim — desde que seja fervida. A fervura mata bactérias e
parasitas, o que já é um bom avanço. Mas não elimina metais pesados nem resolve
problemas relacionados ao flúor, que é um benefício à saúde bucal e deve ser
mantido”, completa.
Ela reforça também que os alimentos crus, como frutas e
verduras, devem ser lavados com solução específica, e que não se deve confiar
apenas no enxágue. “O maior erro é lavar com água da torneira e achar que está
limpo. Quando falamos em segurança dos alimentos, a contaminação pode estar em
detalhes”.
Cozinha limpa não é, necessariamente, cozinha segura
Paula Eloize também chama atenção para outro ponto sensível:
a percepção equivocada de que um ambiente limpo é, automaticamente, um ambiente
seguro. “Não basta estar visualmente limpo. A higienização precisa seguir
critérios técnicos. Uma esponja suja, um pano úmido, uma tábua de carne com
ranhuras ou mesmo o ato de manipular alimentos crus e, na sequência, mexer na
salada, são práticas perigosas”, destaca a especialista.
Outro fator crítico é a temperatura dos alimentos. A chamada
“zona de perigo” — entre 5°C e 60°C — é o intervalo onde bactérias se
multiplicam rapidamente. “Muita gente deixa a comida esfriando em cima da pia
por horas. Além disso, é preciso manter alimentos quentes acima de 60°C e frios
abaixo de 5°C. Parece detalhe, mas pode fazer toda a diferença”, reforça Paula
Eloize.
Do supermercado à mesa: a responsabilidade é sua
Para a especialista, a segurança dos alimentos não é
exclusividade de restaurantes ou da indústria. “Ela começa no supermercado, com
escolhas seguras. Continua na forma como armazenamos os produtos em casa, e
termina na manipulação correta dos alimentos. É uma cadeia de cuidados, e
qualquer elo frágil pode colocar toda a família em risco”, afirma.
Por isso, as orientações são claras:
- Limpe a caixa d’água a cada seis meses;
- Evite utilizar água diretamente da torneira para consumo sem
fervura ou filtragem adequada;
- Verifique o estado do encanamento da sua casa;
- Não armazene alimentos prontos fora da geladeira por mais de
duas horas;
- Nunca reutilize tábuas, facas e panos sem lavagem adequada;
- Treine sua equipe doméstica e fale sobre riscos invisíveis
com quem prepara a comida no dia a dia.
O maior risco pode estar onde você menos espera
Quando dados oficiais mostram que mais de um terço dos surtos alimentares acontecem em casa, a responsabilidade pela saúde da sua família ganha nova dimensão.
“Não basta
fiscalizar restaurantes”, conclui Paula Eloize. “É preciso informar, educar e
empoderar a população para que cada cozinha seja um espaço de cuidado — e não
de risco”.
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