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sábado, 9 de novembro de 2024

A doença da abundância


Pertencente ao final da chamada geração "baby boomer" (1946-1964), vivi em um tempo de poucas ou quase nenhuma opção. Os que, como eu, nasceram a partir de 1960, enfrentaram um período desafiador. Durante a infância e parte da juventude, a energia elétrica era escassa e muitos cresceram sem televisão, geladeira ou telefone. O transporte era extremamente limitado e viagens de 100 km podiam levar dias. A escola pública seguia um modelo meritocrático e excludente: quem não aprendia era retirado e enviado ao trabalho. Em pouco mais de 40 anos, porém, testemunhamos uma transformação radical — hoje, vivemos em uma era de abundância.

Temos abundância de alimentos, apesar de ainda haja fome no mundo. Há uma abundância de opções de lazer, de meios de transporte e de formação profissional, especialmente nas grandes e médias cidades, mesmo diante de críticas. O que dizer dos tratamentos médicos? Sofremos muito menos dor física, cirurgias são realizadas sem grande sofrimento, e já não há necessidade de extrair dentes com tanta frequência. Conseguimos até praticamente zerar a mortalidade infantil e materna, felizmente.

A educação também se transformou. Podemos mudar de curso de graduação, abandonar uma formação e começar outra, e temos vagas nas escolas para praticamente todos. Acesso à informação e ao conhecimento é algo que nunca faltou.

Apesar de tudo isso, nossa sociedade está adoecida. A abundância não trouxe qualidade às relações interpessoais, nem à educação dos jovens. Sofremos com a deterioração da formação profissional, a falta de esforço, a impaciência, a ansiedade, a insônia e a intolerância. Nunca consumimos tantos medicamentos, seja para dormir, seja para ficar acordado ou se manter concentrado. Vivemos com medo e desconfiança. Costumo dizer que, atualmente, não confiamos nem em nossa própria mãe.

Além disso, a abundância de crédito nos levou a outro tipo de escravidão moderna. A facilidade com que acessamos crédito cria uma ilusão de liberdade financeira, enquanto muitos se afundam em dívidas que limitam, ao invés de expandir, sua liberdade real.

Suspeito que essa abundância seja a causa de tantas doenças psicológicas e emocionais. O acesso instantâneo à informação nos deixa inseguros quanto ao futuro. A enorme variedade de alimentos e bebidas nos torna cada vez mais exigentes e insatisfeitos. A vasta gama de profissões à disposição nos faz desistir diante das primeiras dificuldades, acreditando que não vale a pena se esforçar tanto.

Mas existe ainda outro tipo de escravidão, mais sutil: somos escravos de nossas próprias escolhas. Hoje, não somos mais escravos de alguém, de uma religião ou de uma causa específica, mas sim de nossas decisões e da abundância de opções à nossa volta. As inúmeras possibilidades, que deveriam nos libertar, acabam nos aprisionando em dúvidas, incertezas e expectativas inalcançáveis. A liberdade, paradoxalmente, se transforma em um fardo.

O excesso de zelo com nossos filhos cria uma geração mais exigente e egocêntrica. A "lei do menor esforço" faz com que busquemos sempre o caminho mais fácil. E a tecnologia, em vez de nos ajudar a reduzir o trabalho, nos prende ao celular, que se tornou uma ferramenta que demanda nossa atenção 24 horas por dia, sete dias por semana. Como sair desse ciclo? A minha resposta é simples: #aceitaquedoimenos.

 

Ademar Pereira - educador e presidente do Instituto Destino Brasil, e ex-presidente do Sinepe/PR.


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