Sentimento de culpa, depressão perinatal, distúrbios mentais e, em casos extremos, até suicídio são efeitos da perspectiva da perfeição relacionada ao maternal
Romantizar
a maternidade, como o próprio nome indica, é idealizar a realidade, criando uma
visão otimista e muitas vezes irreal. Isso implica estabelecer um padrão ideal
e esperar que todas as mulheres o alcancem, especialmente em termos de
comportamento materno. Essa idealização, enraizada em uma perspectiva
patriarcal, gera uma pressão que resulta numa série de problemas para as
mulheres, especialmente para aquelas que são mães de recém-nascidos.
Izabella
Melo, professora de Psicologia do Centro Universitário de Brasília (CEUB)
destaca desafios enfrentados pelas mães, que variam desde questões de saúde e
mudanças corporais até experiências sociais e profissionais, muitas vezes são interpretados
como problemas individuais ou falhas da mulher. A especialista defende o papel
da psicologia em fortalecer o vínculo entre mãe e filho durante a gestação e
após o nascimento.
Confira
entrevista, na íntegra:
Como considera a influência da romantização da maternidade na
experiência das mulheres durante a gestação?
IM:A
maternidade, como faceta da vida feminina, está imersa em uma rede complexa de
expectativas, normas e romantizações. O período da gestação, que marca o início
desse processo, frequentemente é idealizado, mas enfrenta uma série de
desafios. Ao reconhecer que as dificuldades são normais e que existem recursos
para lidar com elas, podemos tornar o processo da gestação menos árduo. Isso
requer um ambiente de diálogo franco e acolhedor, onde as mulheres se sintam à
vontade para compartilhar suas experiências e buscar ajuda quando necessário.
Em vez de perpetuar a romantização idealizada, é essencial oferecer apoio
realista e prático às gestantes, ajudando-as a navegar por esse período
desafiador com mais confiança e conforto.
Quais são os principais desafios emocionais que as mulheres enfrentam ao
confrontar a idealização da maternidade com a realidade?
IG:O
processo de idealização da maternidade não se limita ao indivíduo; não é
simplesmente uma questão das expectativas de uma única mulher, casal ou
família. Ele está enraizado em expectativas rigorosas sobre os papéis que as
mulheres devem desempenhar, especialmente durante a fase adulta. As dinâmicas
de romantização da maternidade são alimentadas pela comunicação intrafamiliar,
pelo estabelecimento de tradições, crenças, rituais e tabus. E são reforçadas
em um contexto social mais amplo, através da mídia, como novelas, filmes e séries.
A
literatura frequentemente retrata modelos de mães perfeitas, contribuindo ainda
mais para essa idealização. Além disso, as dificuldades enfrentadas pelas
pessoas, como questões relacionadas à licença maternidade, à disponibilidade de
serviços de apoio e ao suporte psicossocial tanto para a mãe quanto para a
criança, criam a expectativa de que é exclusivamente dever da mãe lidar com as
demandas dessa fase da vida.
Em
relação aos desafios emocionais, é comum identificar mães sobrecarregadas desde
a gestação, passando pelo período pós-parto e durante o desenvolvimento dos
filhos. Essa sobrecarga pode resultar em sentimentos desagradáveis, como raiva,
culpa, decepção e frustração. É importante reconhecer que quanto menos
discutimos a romantização da maternidade, mais espaço estamos concedendo para
que esses sentimentos se intensifiquem e afetem um número maior de mães.
Como a história cultural da maternidade, especialmente a associação com
figuras como Maria, influencia as expectativas de mulheres sobre a sua própria
experiência?
IG:
Quando pensamos nas figuras emblemáticas de mães, nas várias representações
retratando Maria com o filho Jesus no colo, percebemos como a expectativa de
abnegação e doação integral da mãe para os filhos pode ser prejudicial para o
desenvolvimento psicossocial dessas mulheres. Essa expectativa é simplesmente
inatingível, especialmente nos dias de hoje, em que as mulheres são demandadas
a se inserir no mercado de trabalho, buscar sucesso financeiro e lidar com uma
série de outras responsabilidades. E ainda, espera-se que elas estejam sempre
impecáveis, pois qualquer desleixo pode ser interpretado como falta de
feminilidade, reforçando assim dinâmicas femininas muito rígidas.
A
falta de diálogo franco sobre essas expectativas inalcançáveis pode aumentar a
sobrecarga da maternidade, que já é naturalmente sobrecarregada. O cuidado
parental demanda uma série de atividades de suporte físico, emocional e
educacional para os filhos. Se ainda existe a expectativa de fazê-lo de forma
perfeita, sem reclamações e amando todo o processo, é provável que observemos a
manifestação de sintomas ansiosos ou depressivos, além do agravamento de outros
possíveis quadros de saúde mental que a mãe possa ter antes disso.
Qual é o papel da psicologia na desconstrução desses ideais românticos e
na promoção de uma visão mais realista da maternidade?
IG:
Na virada dos anos 80 para os 90, a psicologia brasileira assumiu o compromisso
social de promover e garantir os direitos de todos os cidadãos do país. Isso
implica considerar as especificidades de grupos de cidadãos, como as mulheres e
as mães. Para garantir esses direitos, são necessários debates francos sobre as
diversas experiências de maternidade, bem como políticas públicas que ofereçam
segurança para as mães em áreas como educação, moradia, trabalho e lazer. A
individualização no cuidado dos filhos, especialmente focada no papel feminino,
prejudica a saúde mental das mães na contemporaneidade.
A
psicologia, por meio de suas diversas áreas de atuação, pode contribuir para a
promoção desses direitos. Na psicologia escolar, por exemplo, podemos pensar em
como as relações dentro da escola podem influenciar o bem-estar das mães dos
estudantes. Na psicologia do trabalho, a promoção de culturas organizacionais
saudáveis e flexíveis pode melhorar a qualidade de vida das mulheres que são
mães. E na psicologia clínica, por meio de processos terapêuticos, podemos
desconstruir expectativas prejudiciais sobre a maternidade e reconstruir
concepções mais saudáveis e promotoras de bem-estar.
Como considera a ambivalência que algumas mulheres sentem em relação à
maternidade quando desejam a gravidez?
IG:
Ao abordar a ambivalência que algumas mulheres sentem quando desejam a
gravidez, é fundamental que qualquer profissional de saúde compreenda que a
maternidade é um fenômeno complexo, repleto de experiências diversas. É comum
encontrar sentimentos contraditórios, como amor, estresse, frustração,
satisfação, angústia e surpresa, coexistindo dentro desse processo. Ao
reconhecer essa diversidade de sentimento em relação aos filhos e à
maternidade, podemos acolher a ambivalência de forma mais eficaz.
Muitas
mulheres expressam amor pelos filhos, mas não gostam do processo da
maternidade. Isso pode ocorrer devido à solidão, à falta de apoio familiar,
social ou de políticas públicas. Por exemplo, para mães solo, uma realidade
infelizmente comum no Brasil, o processo da maternidade pode ser especialmente
estressante, levando à não apreciação dele.
Desconstruir
a romantização da maternidade também implica em reconhecer e discutir a
diversidade de sentimentos que uma mãe pode experimentar em relação aos seus
filhos. Ao lançar luz sobre essa diversidade, oferecemos um espaço mais
inclusivo e acolhedor para as mulheres que estão navegando pelo complexo e
multifacetado caminho da maternidade.
Como podemos incentivar um diálogo mais aberto, inclusivo, sobre os
desafios emocionais da maternidade na sociedade?
IG:
Podemos incentivar um diálogo mais aberto e inclusivo sobre os desafios
emocionais da maternidade na sociedade através de várias estratégias. Isso
inclui a implementação de políticas públicas que garantam segurança e apoio
para mulheres e famílias em questões como segurança pública, habitação,
trabalho e lazer. Também é importante usar a mídia, como novelas e programas de
variedades, para debater os desafios da maternidade e desmistificar
expectativas irreais. Além disso, promover conversas francas e acolhedoras dentro
das famílias e criar comunidades online onde as mães possam compartilhar
experiências.
Em que medida a intervenção psicológica pode contribuir para fortalecer
o vínculo mãe e filho durante a gestação e após o nascimento?
IG:
A intervenção psicológica desempenha um papel importante em fortalecer o
vínculo entre mãe e filho durante a gestação e após o nascimento. Oferecer
suporte emocional e identificar sinais de estresse, ansiedade e depressão em
mães são passos importantes para promover um ambiente de cuidado e apoio.
Valorizar o repertório existente das mães e famílias, ao mesmo tempo em que se
promove a flexibilização de crenças rígidas e expectativas inalcançáveis, é
essencial para fortalecer a autoestima e a confiança das mães. É necessário um
ambiente de respeito à humanidade de ambos, mãe e filho, enfatizando a
importância do apoio social e da interação com outros adultos, como
fundamentais para o desenvolvimento de um vínculo de qualidade.
Quais recursos ou apoios adicionais você recomendaria para mulheres que
estão lutando para reconciliar suas experiências pessoais com as expectativas
sociais da maternidade?
IG:
Primeiramente, elas devem refletir sobre suas experiências familiares,
explorando as dinâmicas intrafamiliares e as influências transmitidas ao longo
das gerações. Isso pode ajudar a entender melhor as origens das expectativas
sociais e a tomar decisões conscientes sobre quais modelos de maternidade
desejam seguir. Além disso, recomendo que ajustem suas expectativas de acordo
com suas próprias possibilidades e limitações, considerando as circunstâncias
específicas. Como solução, buscar apoio emocional e prático, seja por meio de
grupos de apoio, terapia individual ou familiar, para lidar com os desafios
emocionais e encontrar estratégias para uma maternidade mais autêntica e
satisfatória.
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