A utilização de cateter venoso central é um dos fatores de risco;
há evidências de que sua remoção ajuda a reduzir a mortalidade por candidemia
(foto: Eliola/Pixabay)
Artigo publicado no Journal of Fungi analisou a infecção por fungos do
gênero Candida na corrente sanguínea, comparando dados
entre 2010/2011 e 2017/2018 no Brasil, e mostrou que o país ainda apresenta
taxas de mortalidade extremamente elevadas, apesar dos avanços nas práticas
terapêuticas. A candidemia é a infecção fúngica invasiva hospitalar mais
prevalente em todo o mundo, com incidência variando de 0,33 a 6,51 episódios a
cada mil internações.
A análise comparativa teve apoio da FAPESP e foi feita
com dados de 11 hospitais públicos e privados, num total de 616 casos, sendo
369 do primeiro período e 247 do intervalo mais recente. O uso de antifúngicos
da classe de equinocandinas foi intensificado – passou de 13% para 41%, mas não
houve reflexo nos índices de mortalidade, alertando para a necessidade de
observar outros fatores.
“Temos um
problema de diagnóstico tardio, que ainda depende exclusivamente da hemocultura
e requer tempo para crescimento e identificação do fungo em laboratório. A
sensibilidade desse método é baixa, até 50% de pacientes podem ter exame
negativo na presença da doença. O tempo é crucial para a sobrevida do paciente
e precisamos encurtá-lo, investindo em melhores técnicas não dependentes de
cultura, incluindo diagnóstico molecular e por biomarcadores”, aponta Caroline
Agnelli, primeira autora do artigo e doutoranda em doenças infecciosas e
parasitárias na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Além disso, chama a atenção no trabalho o índice de pessoas que não
chegam a receber tratamento. “De cada dez indivíduos, dois nem sequer são
tratados por falta de recurso diagnóstico e pelo menos metade dos que recebem
tratamento morre. Para ter uma ideia, dados coletados por colegas de Porto
Alegre em mais de 120 centros médicos da América Latina demostram que só um em
cada dez hospitais tem recurso suficiente para fazer uma boa abordagem
diagnóstica em micologia médica – e isso vale para várias infecções fúngicas”,
alerta o professor da Unifesp Arnaldo Colombo.
Para os pesquisadores, o estudo mostra que, apesar do amplo conhecimento
que se tem sobre a história natural de infecções invasivas por Candida – ao contrário de outros fungos
negligenciados –, não houve uma redução de mortalidade. “O prognóstico do
paciente é multifatorial, mas temos conhecimento do que pode fazer a diferença.
São medidas como início precoce de antifúngico combinado com o controle
oportuno e eficaz da fonte de infecção, incluindo a remoção de cateter venoso
central”, explica Agnelli.
A
candidemia é uma complicação que geralmente aparece em pacientes críticos,
hospitalizados por longos períodos, principalmente em unidades de terapia
intensiva, com uso de antibióticos de amplo espectro, corticoides, ou que têm
alguma demanda de processo invasivo, como diálise ou procedimento cirúrgico,
especialmente abdominal. A utilização de cateter venoso central é um dos
fatores de risco, mas a proporção de remoção precoce nos casos de candidemia
permaneceu abaixo de 50% ao longo dos anos estudados. “Ainda que a decisão da
retirada deva ser individualizada por motivos de segurança, gravidade da doença
ou condições clínicas, é uma medida que deve ser priorizada sempre que possível
para melhor prognóstico”, afirmam os pesquisadores.
Vale ressaltar que o fungo que causa a candidemia hospitalar é o mesmo
que já coloniza naturalmente o trato gastrointestinal – bastante conhecido
pelas mulheres por causar candidíase vaginal. “É inofensivo quando se está com
boa imunidade e fora do contexto de uma hospitalização. Mas em ambiente
hospitalar há fatores que promovem a transição de colonização para doença
invasiva, como uso de antibióticos, por exemplo, que favorecem a disbiose, reduzindo
a microbiota bacteriana e aumentando a população de Candida, assim como a realização de procedimentos
médicos invasivos para tratamento do paciente. Diante de condições associadas à
baixa imunidade e ao ambiente hospitalar, o cenário vivendo com o inimigo de
forma saudável se transforma em vivendo com o inimigo de forma crítica”,
explica Colombo.
Mudança
de perfil e outros estudos
As taxas
de mortalidade foram inaceitavelmente altas e permaneceram inalteradas ao longo
dos anos do estudo, apesar do uso mais amplo de equinocandinas. Para os
autores, isso provavelmente está associado à mudança na população de risco e
estratégias que podem ser melhoradas. “Houve mudança no perfil. Percebemos que
a idade não aumentou, mas a qualidade do envelhecimento dos pacientes é
diferente. Ultimamente, têm mais comorbidades, chegam já com histórico de mais
internações anteriores”, pondera Agnelli.
Os
pacientes de ambos os períodos tinham idade mediana semelhante (62 e 65 anos) e
não houve diferença significativa na gravidade clínica inicial. Porém, nos anos
mais recentes, dobrou o número dos que apresentavam mais de três comorbidades
(29% contra 16% em 2010) e em processo de diálise (15% contra 8% em 2010). Os
pacientes do período mais recente apresentaram candidemia mais rapidamente e
40% já tinham histórico de outras internações (contra 21% em 2010).
“Temos uma taxa de mortalidade com 14 dias da infecção em torno de 35%,
e em torno de metade dos casos em 30 dias. É muito elevado e, há alguns anos,
nos perguntamos a razão, comparando com as taxas de outros países”, destaca
Colombo, citando um estudo feito em parceria com a
Espanha. Os pacientes europeus apresentaram taxas de mortalidade
significativamente menores, apesar de serem mais velhos do que os brasileiros.
“Além do diagnóstico, ficou claro que eles retiram o cateter mais rapidamente,
com controle de foco eficaz, e entram com o antifúngico correto também mais
cedo. Ou seja, todo o protocolo de sepse bacteriana tão divulgado nas unidades
de terapia intensiva é muitas vezes negligenciado quando se trata de infecção
por fungos no Brasil. O tempo para o início do manejo terapêutico é crucial
para o prognóstico do paciente e o estudo permite ver isso muito bem”, completa
Agnelli.
Há alguns anos, Colombo e seu grupo se dedicam ao estudo de
epidemiologia, boas práticas terapêuticas e emergência de patógenos
resistentes. Agora, o pesquisador vai coordenar um Centro de Pesquisa, Inovação
e Difusão (CEPID) da FAPESP com o propósito de
estudar a questão da resistência antimicrobiana. São mais de 30 pesquisadores
envolvidos e dez centros de pesquisa de vários países, além de parceiros na
gestão pública e do setor privado (leia mais em: agencia.fapesp.br/41018).
Metodologia
e desafios
Os dados do estudo publicado no Jornal of Fungi foram
coletados a partir da confirmação da infecção por Candida por meio de um protocolo de vigilância
laboratorial de rotina, incluindo dados demográficos, condições médicas,
fatores de risco e condições associadas à candidemia, como uso de antibióticos
de amplo espectro, quimioterapia, corticosteroides, cirurgia prévia, cirurgia
abdominal, cateter venoso central, nutrição parenteral, identificação das
espécies de cândida, gravidade clínica, antifúngicos prescritos, tempo para
início do tratamento, tempo para remoção do cateter e mortalidade em 14 e 30
dias da hemocultura positiva. A espécie era analisada pelo laboratório local e
o material enviado ao Laboratório Especial de Micologia (Lemi), da Unifesp,
para confirmação.
Esse
trabalho de vigilância epidemiológica é realizado há muito tempo e com a
colaboração dos hospitais, o que possibilita semelhança entre as fichas
clínicas. “Mas não é simples colher esses dados com acurácia. Há todo um
processo de acompanhamento e auditoria, uma análise muito criteriosa para
fundir bancos de dados e fazer comparações corretas”, explica Colombo. “A
tecnologia ainda não evoluiu tanto para facilitar a fusão de duas bases. É
preciso constantemente revisar os critérios, alinhando tudo para fazer com que
as populações, as amostras e as variáveis sejam comparáveis”, destaca Agnelli.
Segundo a
pesquisadora, as micoses sistêmicas não integram a lista nacional de doenças de
notificação compulsória no Brasil. Elas também não são objeto de vigilância
epidemiológica de rotina e, por isso, não existem dados epidemiológicos da
ocorrência, magnitude e transcendência da candidíase sistêmica em nível
nacional. No Brasil, a taxa de incidência chega a 2,49 casos de candidemia por
mil admissões nos hospitais públicos terciários, o que corresponde a uma taxa
de duas a quinze vezes maior do que as relatadas nos Estados Unidos e em
países da Europa.
O artigo Prognostic trends and current challenges in candidemia: A comparative analysis of two multicenter cohorts within the past decade pode ser lido em: www.mdpi.com/2309-608X/9/4/468.
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/infeccoes-por-icandida-i-ainda-tem-alta-taxa-de-mortalidade-no-brasil-apesar-de-avanco-terapeutico/41832/
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