Por anos o pintor Paul Gauguin (1848-1903), que legou ao mundo uma bela e controvertida biografia, viveu um dilema: ser ou não ser artista. Levava vida confortável, ganhando dinheiro como corretor de valores. Para atender, talvez o pulsar da arte, talvez a vaidade, punha-se de artista nos fins de semana.
Em
1882, o mundo econômico ruiu (crises não são novidades). Foi-se o dilema; havia
um argumento imperioso recomendando o caminho do artista. Mais: havia fatos
cogentes a desobrigá-lo da condição de, quem sabe, futuro próspero homem de
negócios.
Dilema
é uma figura da lógica: “raciocínio cuja premissa é alternativa, de sorte que
qualquer dos seus termos conduz à mesma consequência”. O vocábulo foi furtado
da acepção acadêmica, ganhando um sentido figurado: “situação embaraçosa com
duas saídas difíceis ou penosas” (Aurélio).
Desde
que se tornou artista, aliás, sem reconhecimento ao seu tempo, Gauguin jamais
padeceu dessa desagradável aflição de viver para enricar. Por escolha, levou
vida devassa. Teria dispensado indagações morais por uma razão simples:
exonerara-se de qualquer submissão à moral vigente.
Não
obstante esse estado de desprendimento dos costumes e independência intelectual
que os espíritos ilustrados alcançam, nas anotações de suas memórias,
publicadas como livro em 1903, intitulado Antes e Depois, ele confessa um
dilema.
“Tenho
um galo. Ele é bonito e me diverte. Tenho uma galinha cinza prateado, de penas
arrepiadas; ela cavoca, bica, estraga as minhas flores. Não faz mal, ela é
engraçada sem ser pudica: o galo lhe faz sinal com as asas e com as patas, e
logo ela oferece o seu sobrecu.
Lentamente,
vigorosamente, ele monta nela. As crianças riem; eu rio. Que penúria, nada pra
comer. Se eu comesse o galo? Ele estaria muito duro. A galinha, então? Mas eu
não me divertiria mais vendo meu galo de asas púrpuras, de pescoço dourado, de
rabo preto, montar na sua galinha. As crianças não ririam mais. Continuo com
fome!!!” (Editado).
Seu
dilema, ainda que tangido pela fome, suponho de entretenimento: um gracejo de
si para consigo. Há quem saiba motejar com própria penúria: Gauguin continuou
com vontade de comer diante da “insolúvel” dúvida sobre qual galináceo seria a
comida que, afinal, não comeu.
Não
era dilema elevado, hamletiano: “Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
em nosso espírito sofrer pedras e setas com que a Fortuna, enfurecida, nos
alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provações e em luta pôr-lhes fim?” (A
tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, Shakespeare).
Talvez
essa seja a reflexão (ou ameaça metafórica) mais famosa da literatura
universal. Famosa, ainda que “reduzida” à sua introdução: “Ser ou não ser, eis
a questão”. Sobre o contexto do dito ou o significado do dizer pouco se sabe,
dado que o sabê-los exigiria frequentar a obra.
Bem,
quero dizer que as angústias da humanidade não costumam alcançar alta
indagação; não são kierkegaardianas (compreensão da possibilidade de ser
livre), ou heideggerianas (percepção do nada absoluto sobre o qual se configura
a existência).
A
vida soe ser afeita a muitas certezas e poucas dúvidas. Os dilemas da vida
corrente, em geral, não são filosofia. Nem alcançam a interrogação (talvez, de
fato, uma afirmação) do dramaturgo inglês. Eles são tais e quais a jocosa
indecisão do artista francês.
Na
vida cotidiana, já com sobrepeso, temos prazer e culpa ao comer; ficamos horas
satisfeitas e culpadas nas redes sociais; mulheres trabalham e se acusam
(ainda, muitas) em dívida com os afazeres da vida doméstica; homens (alguns) se
dividem entre mais trabalho ou mais dedicação aos afetos do lar.
Moralismos
e conformações: ardoroso prazer de dormir com outro alguém, culpa por crer que
“traiu” o alguém contratual; pagar feliz pela busca de aparência, sofrer por
não alcançar o tipo ideal; alegria de beber para fugir da mediocridade, ressaca
moral por encontrar-se consigo mesmo ao fim do efeito do porre.
Todos
estamos sujeitos a circunstâncias dilemáticas. Grandes ou pequenas, elas nos
podem deixar boquiabertos. Existe, contudo, quem controle melhor as coisas e
não se deixe apanhar pasmado numa “sinuca de bico”; perspicazes sabem divisar
situações de saída difícil.
Dilemas:
há quem saiba identificá-los, medi-los e eleger os seus. Rendo-lhes reverência.
Gauguin, para seus fins, escolheu um pequeno. Não ouso concluir se com ele se
divertia, ou se exprimia rancor à ingratidão que a sua época lhe dedicou. Mas
ele o escolheu.
Há,
todavia, quem não tenha uma boa medida dessas coisas e se deixe levar de
atropelo, pondo-se titubeante a deliberar mais sobre o que seriam os custos de
uma escolha difícil do que a respeito do encurralamento existencial que um
dilema propriamente dito nos traz.
Escolha
implica perdas, porém, contempla solução. Dilema é a gravidade que não tem
saída satisfatória. Quem não suporta perdas idealiza dilemazinhos: decisões de
não decidir. Covardias do sobreviver diário. Gente assim pega gosto disso e
nisso leva a vida. Fazer o quê?
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
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