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sábado, 22 de julho de 2023

Dilemas do cotidiano

Por anos o pintor Paul Gauguin (1848-1903), que legou ao mundo uma bela e controvertida biografia, viveu um dilema: ser ou não ser artista. Levava vida confortável, ganhando dinheiro como corretor de valores. Para atender, talvez o pulsar da arte, talvez a vaidade, punha-se de artista nos fins de semana. 

Em 1882, o mundo econômico ruiu (crises não são novidades). Foi-se o dilema; havia um argumento imperioso recomendando o caminho do artista. Mais: havia fatos cogentes a desobrigá-lo da condição de, quem sabe, futuro próspero homem de negócios.

 

Dilema é uma figura da lógica: “raciocínio cuja premissa é alternativa, de sorte que qualquer dos seus termos conduz à mesma consequência”. O vocábulo foi furtado da acepção acadêmica, ganhando um sentido figurado: “situação embaraçosa com duas saídas difíceis ou penosas” (Aurélio).

 

Desde que se tornou artista, aliás, sem reconhecimento ao seu tempo, Gauguin jamais padeceu dessa desagradável aflição de viver para enricar. Por escolha, levou vida devassa. Teria dispensado indagações morais por uma razão simples: exonerara-se de qualquer submissão à moral vigente.

 

Não obstante esse estado de desprendimento dos costumes e independência intelectual que os espíritos ilustrados alcançam, nas anotações de suas memórias, publicadas como livro em 1903, intitulado Antes e Depois, ele confessa um dilema.

 

“Tenho um galo. Ele é bonito e me diverte. Tenho uma galinha cinza prateado, de penas arrepiadas; ela cavoca, bica, estraga as minhas flores. Não faz mal, ela é engraçada sem ser pudica: o galo lhe faz sinal com as asas e com as patas, e logo ela oferece o seu sobrecu.

 

Lentamente, vigorosamente, ele monta nela. As crianças riem; eu rio. Que penúria, nada pra comer. Se eu comesse o galo? Ele estaria muito duro. A galinha, então? Mas eu não me divertiria mais vendo meu galo de asas púrpuras, de pescoço dourado, de rabo preto, montar na sua galinha. As crianças não ririam mais. Continuo com fome!!!” (Editado).

 

Seu dilema, ainda que tangido pela fome, suponho de entretenimento: um gracejo de si para consigo. Há quem saiba motejar com própria penúria: Gauguin continuou com vontade de comer diante da “insolúvel” dúvida sobre qual galináceo seria a comida que, afinal, não comeu.

 

Não era dilema elevado, hamletiano: “Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e setas com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provações e em luta pôr-lhes fim?” (A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, Shakespeare).

 

Talvez essa seja a reflexão (ou ameaça metafórica) mais famosa da literatura universal. Famosa, ainda que “reduzida” à sua introdução: “Ser ou não ser, eis a questão”. Sobre o contexto do dito ou o significado do dizer pouco se sabe, dado que o sabê-los exigiria frequentar a obra.

 

Bem, quero dizer que as angústias da humanidade não costumam alcançar alta indagação; não são kierkegaardianas (compreensão da possibilidade de ser livre), ou heideggerianas (percepção do nada absoluto sobre o qual se configura a existência).

 

A vida soe ser afeita a muitas certezas e poucas dúvidas. Os dilemas da vida corrente, em geral, não são filosofia. Nem alcançam a interrogação (talvez, de fato, uma afirmação) do dramaturgo inglês. Eles são tais e quais a jocosa indecisão do artista francês.

 

Na vida cotidiana, já com sobrepeso, temos prazer e culpa ao comer; ficamos horas satisfeitas e culpadas nas redes sociais; mulheres trabalham e se acusam (ainda, muitas) em dívida com os afazeres da vida doméstica; homens (alguns) se dividem entre mais trabalho ou mais dedicação aos afetos do lar.

 

Moralismos e conformações: ardoroso prazer de dormir com outro alguém, culpa por crer que “traiu” o alguém contratual; pagar feliz pela busca de aparência, sofrer por não alcançar o tipo ideal; alegria de beber para fugir da mediocridade, ressaca moral por encontrar-se consigo mesmo ao fim do efeito do porre.

 

Todos estamos sujeitos a circunstâncias dilemáticas. Grandes ou pequenas, elas nos podem deixar boquiabertos. Existe, contudo, quem controle melhor as coisas e não se deixe apanhar pasmado numa “sinuca de bico”; perspicazes sabem divisar situações de saída difícil.

 

Dilemas: há quem saiba identificá-los, medi-los e eleger os seus. Rendo-lhes reverência. Gauguin, para seus fins, escolheu um pequeno. Não ouso concluir se com ele se divertia, ou se exprimia rancor à ingratidão que a sua época lhe dedicou. Mas ele o escolheu.

 

Há, todavia, quem não tenha uma boa medida dessas coisas e se deixe levar de atropelo, pondo-se titubeante a deliberar mais sobre o que seriam os custos de uma escolha difícil do que a respeito do encurralamento existencial que um dilema propriamente dito nos traz.

 

Escolha implica perdas, porém, contempla solução. Dilema é a gravidade que não tem saída satisfatória. Quem não suporta perdas idealiza dilemazinhos: decisões de não decidir. Covardias do sobreviver diário. Gente assim pega gosto disso e nisso leva a vida. Fazer o quê? 

 

Léo Rosa de Andrade

Doutor em Direito pela UFSC.

Psicanalista e Jornalista.

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