O forte apache era um dos brinquedos mais incríveis que o menino já tivera. As paliçadas, o portão e as casas internas eram de madeira. Apenas os postos de observação eram de plástico marrom escuro, encaixados. Os seus cowboys circulavam com seus cavalos ou apontavam seus rifles para o horizonte do quintal de areia da sua casa da infância. Lá longe, atrás dos formigueiros, as cabeças dos índios com suas lanças, rifles e arcos e flechas indicavam uma ameaça iminente. A tensão era grande. De repente, abria-se o portão do forte e um cavaleiro solitário, com um pedacinho de pano branco na mão - a mãe ralhava e tentava acertá-lo com uns tapas no cocoruto quando descobria seus panos de prato cortados - ia vagaroso em direção às montanhas, a poeira levantando alto, ao fundo só se ouvindo o cacarejar das galinhas índias ciscando dentro do galinheiro. Toda a cena se passava no centro do quintal, debaixo da jaqueira de jacas duras, o que adicionava um outro elemento de perigo ao evento: a qualquer momento, uma bruta poderia deslizar do galho mais alto e sufocar toda a tropa debaixo de gomos grudentos e madeiras destruídas.
A estratégia do ataque era sutil e fora longamente
discutida pelos líderes. A ideia era fazer os inimigos se revelarem, imaginando
que haveria uma rendição. A cena era repetida muitas vezes, a mão do menino
fazendo o cavalo rajado percorrer a distância entre o forte e os formigueiros,
desviando de uma ou outra saúva que continuava em sua marcha, indiferente ao
sangrento conflito que estava por começar.
O momento da batalha exigia outras providências
estéticas importantes, e aí, as agulhas da caixa de cerzir e o fundinho do
vidro de esmalte vermelho que a mãe já quase não usava vinham a calhar. Difícil
era decidir quem cairia em batalha, quem seria ferido e quem conseguiria se
esgueirar entre os gritos de horror e rostos retorcidos para acabar com a raça
do líder inimigo. Seria a vez de os cowboys vencerem mais uma vez ou seriam os
índios - hoje seriam os indígenas, os povos originários, embora tudo se
passasse perto das montanhas rochosas, nos vales de canyons soprados pelo vento
que faziam rolar as touceiras e deixavam os lobos inquietos, uivando sem parar
- quem levaria a melhor. Outra dúvida que atormentava é se haveria ou se não
haveria fogo, flechas incendiárias jogadas para dentro do forte, gerando um
corre corre das mocinhas e das senhoras, agarradas aos seus rebentos. Depois de
breve deliberação interna, um sanduíche feito às pressas com um pouco da carne
do almoço - a mãe ralharia quando descobrisse, era pro jantar, e tentaria mais
uma vez alcançá-lo com suas mãos pequeninas - decidia-se pela ausência do fogo,
pensando principalmente no risco de danos ao brinquedo que amava tanto.
A batalha desenrolava-se rápido. Não havia
palavras, todas existiam somente dentro da sua cabeça: os gritos, palavrões,
esgares, uivos, brados de valentia e chamamentos à luta. O quintal continuava
silencioso, quebrado pelos pios dos pintinhos junto às mães, a cachorra enorme
ressonando sob o sol do fim da tarde, esperando o dono que traria seu jantar
feito de restos de comida do refeitório da base aérea para dar força para a
longa noite de vigília contra os assaltantes de ocasião, que aproveitavam a
casa de esquina para roubar uma roupa do varal ou mesmo frutas dos diversos pés
que nas manhãs enchiam o areal de folhas amarronzadas.
Desta vez, os cowboys massacraram os nativos,
aprisionando o chefe guerreiro e o líder espiritual da tribo, levando-os,
cabisbaixos, para exibi-los dentro do forte aos que lá ficaram e confiaram em
seus heróis.
A história interrompia-se bruscamente com um
chamado de dentro da casa ou, simplesmente, com o fim da vontade de brincar
disso, ou pela atenção desviada para alguma outra brincadeira, como iniciar uma
batalha sem tréguas contra o ataque das formigas alienígenas ou as lagartas
assassinas do tronco do coqueiro. A mente fervilhava de histórias e de vozes.
De longe, às vezes, a mãe olhava e preocupava-se: esse menino é muito sozinho,
sempre quieto. Será que tem algum problema?
Daniel Medeiros - doutor em
Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros
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