A matéria que conhecemos, ou acreditamos conhecer, corresponde a apenas
5% do conteúdo do Universo observável. Do restante, 25% são constituídos por
matéria escura, sobre a qual não sabemos quase nada; e 70% por energia escura,
sobre a qual sabemos menos ainda.
Toda a
ciência convencional, feita desde a Antiguidade até poucas décadas atrás,
enfocou os 5%. E conseguiu resultados notáveis, tanto no entendimento da
realidade material, por meio das ciências fundamentais, quanto em sua
transformação, por meio das aplicações tecnológicas. Uma quantidade sem
precedentes de megaprojetos científicos nos campos da astronomia e da
astrofísica está na agenda agora, para levar adiante a investigação dos 5% e
incursionar, na medida do possível, nos outros 95%.
Este foi, em resumo, o tom da 14ª Conferência FAPESP 60 Anos, que
enfocou o tema “Astronomia e Astrofísica”. Participaram do evento Brian Schmidt,
vice-reitor da Australian National University (ANU) e vencedor do Nobel de
Física em 2011 pela descoberta da energia escura; Angela Olinto,
reitora da Divisão de Ciências Físicas da University of Chicago, nos Estados
Unidos; e Rob Adam,
diretor do South African Radio Astronomy Observatory (SARAO), que lidera a
participação do país no Square Kilometer Array Observatory (SKAO), o maior
radiotelescópio do mundo.
Schmidt
fez uma exposição muito didática e empolgante sobre os avanços mais recentes da
astronomia e da astrofísica, destacando as observações que liderou em 1994 e
que levaram à descoberta da energia escura, motivo de sua indicação para o
Nobel. Olinto tratou das várias linhas de observação astronômica e astrofísica
realizadas atualmente, em especial da prospecção de astropartículas de
altíssimas energias, seu campo de atuação. E Adam falou principalmente dos
desafios e oportunidades de fazer ciência de primeira linha em um país em
desenvolvimento.
O evento foi aberto por Ronaldo Aloise Pilli,
vice-presidente da FAPESP. E moderado por Beatriz Barbuy,
professora titular do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências
Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP).
“Em 2022,
o que sabemos sobre o Universo?”: Schmidt iniciou com esta pergunta sua
palestra. E resumiu: “Sabemos que está se expandindo. Que tem de 13 a 14
bilhões de anos de idade. Que é composto principalmente por três coisas:
energia escura [70%], matéria escura [25%] e matéria comum [5%]. E que está
muito próximo daquilo que descrevemos como geometricamente plano”.
É bom que
se diga logo que esta última expressão – “geometricamente plano” – não tem nada
a ver com as fantasias pseudocientíficas sobre a “Terra plana”, que foram
desenterradas nos últimos anos. Ela quer dizer que o Universo quadrimensional
pode ser descrito, em larga escala, por meio de uma generalização da geometria
euclidiana, na qual os ângulos internos de qualquer triângulo somam 180 graus,
nem menos nem mais.
“Como sabemos isso?”: seguiu Schmidt, com outra pergunta. E contou uma
breve história da astronomia recente, dizendo como as distâncias dos objetos
astronômicos foram calculadas por meio da intensidade da luz que nos chega
deles. E que conseguimos saber que estão se afastando de nós porque os
comprimentos de onda da luz que emitem se alongam, desviando-se para o vermelho
(redshift).
“Edwin Hubble [1889-1953] colocou tudo isso junto em 1929, relacionando
as distâncias e os redshifts, e
descobriu que, quanto maior a distância, maior o desvio para o vermelho.
Portanto, maior a velocidade de afastamento da galáxia”, disse. A conclusão de
Hubble foi que o Universo como um todo estava em expansão.
A
descoberta de Hubble foi um ingrediente fundamental para a teoria do Big Bang.
Porque, se tudo está se afastando, é possível inverter mentalmente o processo e
imaginar um momento em que tudo estava extremamente próximo.
“O que foi
o Big Bang? Honestamente, eu não sei. Sei apenas que, entre 13 e 14 bilhões de
anos atrás, algo aconteceu que pôs o Universo em movimento”, afirmou Schmidt. E
acrescentou que a coisa mais distante que podemos ver, portanto a mais antiga,
é a radiação cósmica de fundo, uma radiação produzida tempos depois do Big
Bang, quando o Universo, ainda bastante jovem, tinha entre 300 mil e 400 mil
anos de idade, e que atualmente chega à Terra de todas as direções do céu.
“Essa
radiação vem do fato de que, em tal época, o céu inteiro tinha uma temperatura
de 3 mil graus [kelvin] e brilhava como o Sol brilha. Então, desde essa
época, tal luz viajou pelo espaço e pode ser medida agora no planeta Terra [na
forma de micro-ondas].”
Em sua
pesquisa de doutorado, realizada na Harvard University (Estados Unidos), sob a
orientação de Robert Kirshner, Schmidt trabalhou com dados observacionais de
estrelas supernovas de tipo II para medir o valor da constante de Hubble, que
relaciona as velocidades de afastamento das galáxias com suas distâncias em
relação à Terra. E chegou ao valor de 70 quilômetros por segundo por
megaparsec. Isso significa que, a cada megaparsec de distância da Terra, a
velocidade de afastamento das galáxias aumenta em 70 quilômetros por segundo.
Com base nesse valor, ele pôde estimar a idade do Universo em cerca de 14
bilhões de anos.
Pouco
tempo depois, em 1994, as supernovas, desta vez as de tipo Ia, lhe dariam as
informações necessárias para sua maior descoberta. Ao contrário do que toda a
comunidade de astrônomos acreditava então, de que a atração gravitacional entre
os componentes do Universo estaria freando a sua expansão, observações de
supernovas Ia realizadas por seu grupo no Observatório de Cerro Tololo, no
Chile, confirmadas em seguida por observações feitas nos telescópios Keck, no
Havaí, mostraram que o Universo estava se expandido com velocidades cada vez
maiores. “Foi uma completa surpresa”, afirmou Schmidt.
Se a
velocidade de afastamento das galáxias estava sendo positivamente acelerada e
não retardada, era preciso haver alguma coisa, maior do que a atração
gravitacional, empurrando essas galáxias para longe umas das outras. E isso
levou ao resgate da hipótese da “constante cosmológica”, proposta e depois
descartada por Albert Einstein (1879-1955).
Seja
chamada de “constante cosmológica” ou de “energia escura”, o fato é que ninguém
sabe o que essa coisa é. E o não saber é um formidável motor para o
desenvolvimento da ciência. Para transformar o não saber em saber, está em
operação ou em construção um extraordinário conjunto de equipamentos, como
mostrou Angela Olinto na segunda parte da conferência.
Iniciando
sua apresentação com a espetacular imagem do Universo profundo produzida pelo
telescópio espacial James Webb, Olinto falou de vários outros projetos em
andamento.
“O James Webb é um projeto que levou mais de 20 anos para ter resultado.
É um grande sucesso, que nos deixa muito felizes. A parceria da FAPESP, no
Brasil, com a Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, o Brian, na
Austrália, e outros é para construir o Giant Magellan Telescope [GMT], que vai representar uma nova
geração de telescópios no solo. O James Webb tem uma tecnologia de 20 anos
atrás, porque não se mudam os detectores depois de passar 20 anos testando. No
solo, como nossa capacidade é muito maior, poderemos ter um telescópio com
espelho coletor de mais de 25 metros de diâmetro, em comparação com o espelho
de seis metros do James Webb”, sublinhou.
A exemplo do GMT, como detalhou a pesquisadora, há equipamentos já
operando ou que deverão operar logo em todas as faixas do espectro
eletromagnético: rádio, micro-ondas, infravermelho, luz visível, ultravioleta,
raios X e raios gama. Há gigantescos aparatos para a observação de ondas
gravitacionais, como Ligo,
Virgo, Kagra e outros. E há também grandes dispositivos ou projetos destinados
à prospecção de astropartículas altamente energéticas, como o Pierre Auger Observatory, no Chile.
Essas astropartículas são núcleos de átomos ou elétrons que, ao
interagirem com a atmosfera terrestre, produzem chuveiros de partículas. “Os de
alta energia são produzidos por supernovas. Os de altíssima energia, que
constituem meu objeto de interesse, a gente ainda não sabe. É isso que estamos
tentando descobrir. Há raios cósmicos com energias da ordem de 1020 elétrons-volts (eV), muito maiores do que
aquelas que podem ser obtidas na Terra em aceleradores como o Large Hadron
Collider (LHC). E que, por isso mesmo, podem nos informar sobre etapas ainda
mais antigas da formação do Universo”, enfatizou Olinto.
Outro grande objeto de interesse são os neutrinos, que constituem,
inclusive, os candidatos mais simples para a composição da matéria escura. Para
sua detecção, além de megaempreendimentos, como a colaboração internacional
Deep Underground Neutrino Experiment (Dune),
Olinto mencionou o IceCube
Neutrino Observatory, na Antártica, com tanque detector
constituído por um quilômetro cúbico de gelo.
A pergunta política do evento, detalhadamente respondida pelo terceiro
palestrante, Rob Adam, é se um país em desenvolvimento e, portanto, com
recursos limitados, deve se engajar nesse tipo de empreendimento. Sua
instituição, com ele à frente, tem papel destacado na colaboração internacional
Square Kilometer Array Observatory (SKAO).
Trata-se
de um impressionante conjunto de antenas que comporão o radiotelescópio mais
extenso do mundo e permitirão aos astrônomos rastrear todo o céu, com detalhes
sem precedentes, na frequência rádio. O aparato, 50 vezes mais potente do que
qualquer outro de seu gênero, será composto por centenas, eventualmente
milhares, de antenas de média frequência, a serem instaladas na África do Sul.
E por centenas de milhares, eventualmente mais de um milhão, de antenas de
baixa frequência, a serem instaladas na Austrália.
Adam
situou a iniciativa no contexto do processo histórico e econômico da África do
Sul. E destacou que, apesar das dificuldades, ter um projeto desse porte
sediado no próprio país é um enorme incentivo para o desenvolvimento da
indústria local e para a produção de ciência e tecnologia nas universidades.
“Trazer os cientistas e engenheiros mais criativos e respeitados cria um
ambiente muito estimulante para os pesquisadores locais e estudantes”, pontuou.
Quanto ao
argumento, sempre levantado, de que os países em desenvolvimento deveriam se
concentrar em fazer ciência que produza resultados socioeconômicos imediatos, o
pesquisador afirmou que, embora não haja nada de errado em enfatizar uma
ciência capaz de atender mais diretamente as necessidades de alimentação, saúde
e energia da população, os cidadãos mais capacitados para enfrentar esses
problemas são exatamente aqueles cooptados pelos grandes projetos globais.
“Se esses
grandes projetos se localizarem apenas nos países desenvolvidos, os países em
desenvolvimento nunca farão progressos significativos em ciência e tecnologia
de primeira linha, devido à drenagem dos melhores estudantes e pesquisadores”,
argumentou.
Como disse
o vice-presidente da FAPESP na abertura da conferência, “todos nós já nos
deparamos em algum momento de nossas vidas perplexos com a grandiosidade do céu
que nos acolhe”. A pesquisa avançada em astronomia e astrofísica não nos priva
da perplexidade. Ao contrário, eleva-a a um patamar ainda mais alto.
A 14ª Conferência FAPESP 60 Anos: Astronomia e Astrofísica pode ser
assistida na íntegra em: www.youtube.com/watch?v=WNapRhYeVM8&t=5718s.
O eventos anteriores da série podem ser conferidos em: 60anos.fapesp.br/conferencias.
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/o-que-sabemos-do-universo-sabemos-que-esta-se-expandindo-cada-vez-mais-rapido-diz-nobel-de-fisica/39644/
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