Seria o “vida longa ao Rei!” tão óbvia resposta ou teria o Direito Constitucional esquecido que ainda existem monarquias entre as nações?
Desde o século XV, quando Carlos VII da França
ascendeu ao trono, a resposta à pergunta do título que salta à cabeça de todos
é “vida longa ao Rei!”. Resposta essa baseada na lei da transferência imediata
da soberania do monarca morto ao seu sucessor.
No Reino Unido atual, assim como na França do
século XV, “os mortos agarram os vivos” (em tradução livre do original
francês: “le mort saisit le vif”). Portanto, não há vácuo de poder na
transição dinástica do Rei defunto para o Rei sucessor.
Assim foi com o então Charles, Príncipe de Gales.
No exato instante em que a Rainha Elizabeth II deu seu último suspiro, no
último dia 8 de setembro, sua lúgubre (e longa) espera por alcançar o seu
destino acabou. Charles — “pela graça de Deus” ou simplesmente
pelo arcabouço constitucional britânico — ascendeu à posição a qual estava
predestinado, tornando-se o atual Charles III do Reino Unido da Grã-Bretanha e
Irlanda do Norte e Chefe da Comunidade Britânica.
Com sangue, suor, lágrimas, ferro e fogo,
decapitações, esquartejamentos, revoluções políticas, religiosas e econômicas,
o parlamentarismo monárquico britânico se assegurou e a identidade daquele
Reino Unido — não sem algum moderno questionamento separatista ou republicano —
se consolidou.
Desde a ascensão de Charles III ao trono, no
entanto, muito vem se debatendo sobre o papel que o novo monarca exercerá à
sombra do legado materno — que garantiu a manutenção da monarquia britânica no
século XX e permitiu sua penetração no século XXI. Muito se especula se ele
será a ruína da monarquia, essa instituição milenar, que após severos golpes
desde o final do século XVIII, entrou em decadência e se cristalizou como forma
de governo em pouco mais de 40 países, dos quais um terço agora está sob seu
domínio pessoal como chefe de Estado.
Quem hoje pode, com clareza e propriedade,
responder a essa pergunta? Quem pode responder verdadeiramente quais são os
limites, prerrogativas e direitos políticos e pessoais de um monarca no século
XXI? Quem pode explicar a manutenção dessa forma de governo supostamente
anacrônica em nosso tempo? Quem pode interpretar o aparente paradoxo de uma
forma de governo (teoricamente) antidemocrática — por se basear em sucessão
hereditária do chefe de Estado — ser aquela que vige em 9 dos 15 países mais
democráticos do mundo, segundo último levantamento do Índice de Democracia da
The Economist (1)?
Não identificamos dentre a produção acadêmica
realizada no Brasil, comentarista, analista político ou jurista que tenha
bagagem para responder a essa pergunta. No mundo? Um apanhado de contar nos
dedos.
Como apontou o jurista Luc Heuschling, Professor da
Universidade de Luxemburgo, as monarquias europeias para os observadores
estrangeiros são “um mundo totalmente diferente, feito de pompa, meandros legais [...] e
escândalos sobre a vida privada da realeza”. Segundo ele, na
literatura do chamado "Direito Constitucional Global", no
entanto, esse tópico é um ponto em branco. Em termos globais, a ciência
política, incluindo os próprios países monárquicos, acabou por devotar
extensivos estudos a outras instituições do Estado, como a presidência nas repúblicas
(2).
Mesmo no Reino Unido, se estiverem certos os
Professores Robert Hazell e Bob Morris, da University College London, não houve
qualquer nova teoria ou estudo sobre essa forma de governo desde “The English
Constitution” por Bagehot, em 1867 (3).
Ou seja, não há qualquer grande debate acadêmico
atual que explique a relação entre as monarquias e a atual concepção de
democracia e o desenvolvimento democrático (aparentemente quase exemplar em
alguns casos). Não há qualquer debate em que se discuta o papel e o limite de
atuação de um monarca no século XXI, ou mesmo quais seriam as limitações aos
seus direitos fundamentais. Pode o monarca se recusar a sancionar uma lei? Pode
o Rei dissolver o Parlamento ou demitir o Primeiro-Ministro, afinal o governo é
constituído em seu nome? Possui o Rei a liberdade de se casar com quem bem
entender, de votar, de exercer sua liberdade de expressão? São essas perguntas
que a atual literatura jurídica deixou de estudar.
É como se, em nível acadêmico, tudo o que valesse a
pena ser dito sobre as monarquias e os monarcas já tivesse sido dito na
literatura do século XIX e as questões contemporâneas das monarquias fossem
apenas semelhantes às das repúblicas. O mundo, contudo, mudou drasticamente nos
últimos 100 anos.
Sobre Charles III, seu ativismo em certas áreas e
posições políticas bastante contundentes parecem indicar uma atuação muito
diversa da neutralidade exercida por sua mãe. O que a Rainha Elizabeth II tinha
de carisma e relações públicas, seu filho não tem; o que ele tem de
posicionamento político, ela, se tinha, não exerceu ou demonstrou publicamente.
Essa característica de Charles III inspirou,
inclusive, uma peça de teatro lançada em 2014 (transformada em filme em 2017)
intitulada “King Charles III”. Nela se previa para esse novo Rei um
desastroso reinado, no qual, Charles III, como um novo personagem
shakespeariano, movido por sua moralidade, tenta exercer suas prerrogativas ao
não sancionar uma lei considerada indecente e, contrariado pelo Parlamento,
exerce o seu direito de monarca e de chefe de Estado, dissolvendo-o. Já não é
spoiler, sendo a peça uma tragédia, que toda essa régia atuação constitucional
leva o Reino Unido a uma crise institucional e o seu reinado à ruína.
A peça nos leva a vários questionamentos não
respondidos pela literatura do Direito Constitucional moderno. Não há grandes
estudos sobre qual é a liberdade pessoal do monarca como ser humano, tampouco
sobre o limite de atuação do Rei como chefe de Estado ou até sobre qual a razão
de existir um chefe de Estado que, quando exerce suas prerrogativas em defesa
das liberdades de seu povo, causa sua própria ruína e mina a instituição que
ele mesmo representa.
Nenhum dos atuais manuais jurídicos dedica um
capítulo ou seção especificamente às monarquias, sendo como se todas as grandes
questões relacionadas a essa forma de governo – especialmente seu processo de
democratização - tivessem sido definitivamente resolvidas no início do século
XX.
Vez ou outra, contudo, um Rei morre e — em um mundo
cada vez mais diverso do que aquele em que baseou essa forma de governo — a
falta de debate acadêmico sobre o tema faz com que fique mais difícil entender
ou explicar as dinâmicas políticas nas monarquias constitucionais. A monarquia
até pode ser envolvida em certa mágica ou revestida de algo até sobrenatural
para o deleite das massas, mas o funcionamento da forma política de governo não
deve e não pode ser interpretada dessa maneira, pois dela depende a liberdade e
o futuro de tantos.
No mundo, milhões de pessoas vivem sob essa forma
de governo em mais de 40 países — tanto em regimes democráticos, quanto
antidemocráticos. Talvez seja o momento de nos atentarmos que as monarquias
ainda existem e — para além de explicar ou especular apenas sobre o futuro de
um novo monarca — estudar atentamente (e sem preconceitos) seus sucessos ou
fracassos para, nos exemplos, aprimorar nossas próprias instituições.
Se Charles III será um bom ou mau Rei, só o tempo
dirá, mas seu reinado poderá servir, caso aproveitemos essa chance, para
estudar as dinâmicas dessa forma de governo há tanto esquecida pela Academia.
Prestemos atenção, pois a maior monarquia da Terra
está em transição.
Vida longa ao Rei!
Guilherme
de Faria Nicastro - Advogado no
escritório Machado Meyer Advogados, bacharel em Direito com formação
complementar em Relações Internacionais Contemporâneas pela Escola de Direito
de São Paulo da FGV (2017). Diretor para o Estado de São Paulo da Juventude
Monárquica do Brasil e autor do livro “O Caso do Palácio Guanabara: o direito
de propriedade na transição política”
(1) Conforme o último Índice de Democracia (2021) da The Economist, dos
quinze países mais democráticos do mundo, nove são monarquias parlamentaristas
(Noruega, Nova Zelândia, Suécia, Dinamarca, Austrália, Países Baixos, Canadá e
Luxemburgo).
(2) HEUSCHLING, L. Old Monarchies in Old Europe. Anything new? An
Appetizer, with Special Reference to Liechtenstein. International Association
of Constitutional Law (IACL), 2021.
(3) HAZELL, R. et MORRIS, B. (Eds.) The Role of Monarchy in Modern
Democracy. European Monarchies Compared, Oxford and London: Hart, 2020.
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