Opinião
A primeira vez que conversei com um cidadão que
negava o Holocausto foi uma experiência que ainda hoje me enche de dissabores.
Tratava-se de uma pessoa que os antigos chamavam de “fino trato”, com voz
modulada e gestos comedidos, sem nenhum apelo ao sensacionalismo. Falava como
se o que dizia fosse resultado de muita reflexão, de extensa leitura e,
portanto, apresentava seu argumento como quem afirma a mais inquestionável das
evidências.
Não havia, porém, o que objetar. Eu não me permiti
reagir, porque esse era exatamente o propósito do meu pretenso interlocutor. No
momento que eu dissesse “veja bem”, ele teria fincado sua estaca no mundo da
materialidade dos possíveis, e seria uma parte entre as partes dos que afirmam
coisas sobre o mundo. Essa estratégia é de fina tessitura, devo admitir, e por
isso exige muita atenção e atitudes bem calculadas.
Ouvi o crápula com meu olhar fixado em um ponto
atrás da cabeça de cabelos aloirados, já começando a rarear, e sequer registrei
os traços do rosto. O momento que ele esperava se aproximava, e confesso que
fiquei um pouco nervoso, pois precisava desempenhar o meu papel com exatidão e
então sair o mais breve possível dali, antes que colocasse tudo a perder com a
minha raiva e indignação.
E chegou o momento, quando ele, calmo, como se a
pergunta lhe ocorresse ali, sem maiores preparações, disse: "E então, não
concorda com o que eu falei? Há uma lógica nos meus argumentos, não?”
Erra quem pensa que os canalhas agem a romper
cadeiras na cabeça de seus adversários, fazendo ameaças e juras de morte. O
verdadeiro canalha é um simulacro do bem pensante que nunca se deixa abalar,
jogando dentro das regras da argumentação mais precisa, ouvindo com paciência e
falando sem se atropelar, reivindicando o direito ao contraditório, apelando
para fazer parte do clube dos que constroem modelos de realidade e fixam os
paradigmas das ações. Iniciar uma conversa com esses ignóbeis, como se eles
compreendessem a dinâmica do pensamento e do debate voltado para o
aprimoramento do pensamento, é um erro de consequências graves, sendo a
principal delas, a de trazer para dentro do universo plural e democrático no
qual a Ciência se desenvolve, o vírus do obscurantismo e do negacionismo.
Nos anos 90, foi o que aconteceu com a historiadora
Deborah Lipstadt, que teve de provar a um canastrão que o Holocausto de fato
ocorreu e que milhões de pessoas morreram nas câmaras de gás construídas pelos
nazistas. Sua equipe jurídica usou como estratégia, diante do tribunal
britânico, a demonstração de que as fontes usadas pelo mentiroso em suas
afirmações eram falsas ou distorcidas, embora, para um cidadão comum, ele
parecesse até mesmo um historiador, pois escrevia livros grossos e citava
muitos autores e mostrava muitos documentos. No entanto, o pacóvio era, como se
sabia desde o começo, uma farsa que buscava cravar um prego no coração da
Ciência e desacreditá-la por dentro. Ainda hoje me pergunto o que teria
acontecido se os advogados da historiadora não tivessem conseguido demonstrar
aos juízes britânicos que as artimanhas pseudo científicas do canalha eram uma
forma de reativar o antissemitismo e reunir os diversos grupos de saudosistas
do nazismo ainda espalhados pela Europa e pelo mundo.
Eu, diante do meu canalha - sorridente por ter
achado que fez um bom trabalho e que me restava contestá-lo, abrindo flancos e
brechas para a continuação de sua peroração - disse apenas “ok” e permaneci em
silêncio. Depois de ligeira hesitação ele perguntou: “Só isso? Você não vai me
contestar?”. E eu, finalizando minha conversa: "Não há nada para contestar
no que você disse”. Na sequência - ah, que momento -, ele furou a bolha de sua
falsa civilidade e começou a dizer coisas como "isso só prova que você não
tem argumentos; quem cala consente; é sempre assim que vocês acham; eu sei que
tenho razão e é suficiente”.
Confesso que não pude esconder um breve sorriso de
satisfação diante da queda do castelo de cartas do farsante. Saí de cena sem
olhar para trás.
Mais um canalha nazista ignorado.
Daniel
Medeiros - doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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