Nós fazemos
poucas perguntas, salvo entre três e quatro anos, quando questionamos tudo. A
criança, nessa fase, padece de certa angústia. Seu cérebro abarca o mundo e o
mundo torna-se mais complexo do que as explicações que ela se pode dar. A
criança pede ajuda, faz perguntas. As respostas vão criando um repertório de
explicações da realidade. As explicações se vão acrescentando. O conjunto delas
“faz a cabeça” da criança, fornece-lhe a matéria para os próprios pensamentos.
Assim: o conjunto de explicações do mundo forma uma ideologia, um modo de ver e
de sentir a realidade. Essa ideologia constitui o indivíduo, pois estrutura o
seu modo de pensar.
Assim penso porque assim,
com esse teor, ensinaram-me a pensar. Ao meu redor há uma produção social de
narrativas sobre o mundo, repetem-se explicações muito semelhantes para outras pessoas,
o que faz com que minhas crenças sejam confirmadas nas relações cotidianas. Eu
e as pessoas do meu relacionamento fomos educadas sob uma mesma matriz de
crenças, então, cremos nas mesmas coisas. Na nossa vez de responder às
perguntas de filho\as, aluno\as, amigo\as, reafirmamos tudo, pois nunca nos
perguntamos sobre a validade do que aprendemos. Reproduzimos um pacote: um modo
de pensar. A ideologia permanece, com nossa própria contribuição.
Depois de ter a cabeça
ocupada por certas ideias, é difícil rever as coisas. Não se toma uma atitude
sobre as próprias ideias; são as minhas ideias que informam as minhas atitudes.
Como criticar minhas ideias com minhas próprias ideias? Mesmo reexplicadas por
noções posteriores, é difícil rever e suplantar crenças assentadas. Nessas
crenças estão os elementos, reais ou imaginários, de sentir e atuar no mundo.
Exemplifico: no lago Titicaca (Andes), uma culta guia aymará levou-me a
conhecer um templo cristão construído com pedras lavradas retiradas de uma
huaca, sítio sagrado de sua gente. Falava-me sobre o episódio ressentida de
incas e espanhóis, que dominaram seu povo.
Minha cicerone sabia pelos
ancestrais costumes da sua gente e sabia por estudar História que o catolicismo
não era a crença religiosa da sua nação, mas a do invasor. Não obstante, ao
passar diante do templo cristão, persignou-se. Perplexo, indaguei-a, não sem
alguma ironia, sobre o gesto que contrariava o discurso. Respondeu-me que
externava o impregnado em si pelas freiras da escola de sua aldeia. Sabia
psicologia, sabia ciência política, mas isso não desconstituíra a construção
das ideias e das práticas de sua infância. O benzer-se fora incutido na sua
mente infantil. Estava trabalhando para vencer a própria formatação. Estava em
revisão ideológica. Admirável.
Na escola da criança de
amiga minha, a professora boazinha, bondosamente quer acalmar as crianças. Para
conforto dela, pede-lhes silêncio e as instiga a orar ao seu deus. Ora,
crianças não têm deuses; adultos têm deuses. Mas crianças, sob a autoridade da
professora – a professora é uma autoridade moral referente – formatam um deus.
Se a professora orienta assim, na cabeça em formação da criança assim deve ser.
A professora não tem culpa da sua ignorância da diversidade do mundo. Também a
ela, quando criancinha, a sua professora ensinou-lhe desse modo. Sua
mundividência não supõe complexidade, mas uma trivial narrativa religiosa.
Quem se aplica em ciência
questiona narrações simples. Em geral, respeitosamente, não é o caso do\as
professore\as do Ensino Fundamental. Não se lhes oportuniza ciência bastante
para refutarem a repetição ideológica do sistema de crença dominante. A maioria
ecoa em sala de aula o senso comum circulante. Cada Relatório de Monitoramento
Global da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco) denuncia nossa contumaz péssima posição quanto a investimento no
Ensino Fundamental. A questão, pois, não é só a cabecinha da criancinha hoje;
é, também, a cabecinha da professorinha ontem, que se repetirá
amanhã.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
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