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segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

AS CABECINHAS DAS CRIANCINHAS


Nós fazemos poucas perguntas, salvo entre três e quatro anos, quando questionamos tudo. A criança, nessa fase, padece de certa angústia. Seu cérebro abarca o mundo e o mundo torna-se mais complexo do que as explicações que ela se pode dar. A criança pede ajuda, faz perguntas. As respostas vão criando um repertório de explicações da realidade. As explicações se vão acrescentando. O conjunto delas “faz a cabeça” da criança, fornece-lhe a matéria para os próprios pensamentos. Assim: o conjunto de explicações do mundo forma uma ideologia, um modo de ver e de sentir a realidade. Essa ideologia constitui o indivíduo, pois estrutura o seu modo de pensar.


Assim penso porque assim, com esse teor, ensinaram-me a pensar. Ao meu redor há uma produção social de narrativas sobre o mundo, repetem-se explicações muito semelhantes para outras pessoas, o que faz com que minhas crenças sejam confirmadas nas relações cotidianas. Eu e as pessoas do meu relacionamento fomos educadas sob uma mesma matriz de crenças, então, cremos nas mesmas coisas. Na nossa vez de responder às perguntas de filho\as, aluno\as, amigo\as, reafirmamos tudo, pois nunca nos perguntamos sobre a validade do que aprendemos. Reproduzimos um pacote: um modo de pensar. A ideologia permanece, com nossa própria contribuição.


Depois de ter a cabeça ocupada por certas ideias, é difícil rever as coisas. Não se toma uma atitude sobre as próprias ideias; são as minhas ideias que informam as minhas atitudes. Como criticar minhas ideias com minhas próprias ideias? Mesmo reexplicadas por noções posteriores, é difícil rever e suplantar crenças assentadas. Nessas crenças estão os elementos, reais ou imaginários, de sentir e atuar no mundo. Exemplifico: no lago Titicaca (Andes), uma culta guia aymará levou-me a conhecer um templo cristão construído com pedras lavradas retiradas de uma huaca, sítio sagrado de sua gente. Falava-me sobre o episódio ressentida de incas e espanhóis, que dominaram seu povo.


Minha cicerone sabia pelos ancestrais costumes da sua gente e sabia por estudar História que o catolicismo não era a crença religiosa da sua nação, mas a do invasor. Não obstante, ao passar diante do templo cristão, persignou-se. Perplexo, indaguei-a, não sem alguma ironia, sobre o gesto que contrariava o discurso. Respondeu-me que externava o impregnado em si pelas freiras da escola de sua aldeia. Sabia psicologia, sabia ciência política, mas isso não desconstituíra a construção das ideias e das práticas de sua infância. O benzer-se fora incutido na sua mente infantil. Estava trabalhando para vencer a própria formatação. Estava em revisão ideológica. Admirável.


Na escola da criança de amiga minha, a professora boazinha, bondosamente quer acalmar as crianças. Para conforto dela, pede-lhes silêncio e as instiga a orar ao seu deus. Ora, crianças não têm deuses; adultos têm deuses. Mas crianças, sob a autoridade da professora – a professora é uma autoridade moral referente – formatam um deus. Se a professora orienta assim, na cabeça em formação da criança assim deve ser. A professora não tem culpa da sua ignorância da diversidade do mundo. Também a ela, quando criancinha, a sua professora ensinou-lhe desse modo. Sua mundividência não supõe complexidade, mas uma trivial narrativa religiosa.


Quem se aplica em ciência questiona narrações simples. Em geral, respeitosamente, não é o caso do\as professore\as do Ensino Fundamental. Não se lhes oportuniza ciência bastante para refutarem a repetição ideológica do sistema de crença dominante. A maioria ecoa em sala de aula o senso comum circulante. Cada Relatório de Monitoramento Global da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) denuncia nossa contumaz péssima posição quanto a investimento no Ensino Fundamental. A questão, pois, não é só a cabecinha da criancinha hoje; é, também, a
cabecinha da professorinha ontem, que se repetirá amanhã. 


Léo Rosa de Andrade

Doutor em Direito pela UFSC.

Psicanalista e Jornalista.


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