Buscamos a
serenidade da noite. Na praça, somos fregueses da estação de exercícios. Outros
corpos frequentam o lugar. Toma-nos a atenção meia dúzia de pessoas ao violão e
canto piano. A circulação é pouca.
Há
haitianos, poucos; costumam passar por lá. Comentamos seus sorrisos: branco
vivo no preto retinto; seus bonsoir. Há senhoras e seus cachorros, levados a
passear. Vez por outra há travestis, há transexuais.
Noutro dia
havia um corpo alto, forte, bonito. Ombros destacados pelo largo que eram, o
que dizia homem. O mais dele dizia mulher: os cabelos, o andar construído como
feminino, as vestes feitas de delicadeza.
O corpo
nascido macho não venceu o desejo de ser fêmea. Estava de vestido, desses
airosos, revelando sensualidade. Detalhe das etiquetas de feminilidade numa
alça caída. A minúcia provocante anunciava o feminino.
A cédula de
identidade diria masculino; difícil mudar o liame formal do registo de
nascimento. O Supremo Tribunal Federal recém ressignificara (28fev18), porém, a
relação do ser de um sexo com o sentir-se de outro.
A natureza
nos selecionou como corpos machos ou fêmeas. Os encontros com o mundo inscrevem
nos corpos uma história. As histórias pessoais produzem na biologia uma
condição de gênero: sentir-se homem ou mulher.
A condição
sexual, todavia, não tem sido a expressão de vontade dos corpos. A circunstância
sexual resta crivada pelo Estado, pela religião, pela medicina, pela
psicologia. A condição sexual encrava uma relação de poder.
O ideário
liberal, fiador de franquias individuais, tem recebido, no Brasil,
consubstanciação em sua forma nas decisões lúcidas do STF. O Supremo, vencendo
costumes anacrônicos, tem empoderado o indivíduo.
Indivíduos
promovem-se e se dignificam no que lhes distingue. Democracias que vão além das
formalidades e se realizam no exercício da vida reconhecem peculiaridades; distinguem
o indivíduo diante da multidão.
Cármen
Lúcia, então presidente da Corte, arrematou os votos, robustecendo-os ao
aplicar palavras de grande força moral: “Não se respeita a honra de alguém se
não se respeita a imagem que [esse alguém] tem.
Somos iguais,
sim, na nossa dignidade, mas temos o direito de ser diferentes em nossa
pluralidade e nossa forma de ser”. Honrar a personalidade é deferir apreço por
escolhas, por mais estranhas que elas se nos pareçam.
O exercício
de diferenças pessoais é tópico de dignidade. Ninguém exercitará sua dignidade
constitucional se não exercitar sua identidade. “A identidade de gênero não se
prova”, lembrou o ministro Luís Roberto Barroso.
Para o
ministro Marco Aurélio Mello, “é inaceitável no estado democrático de direito
inviabilizar a alguém a escolha do caminho a ser percorrido, obstando-lhe o
protagonismo pleno e feliz da própria jornada”.
“Não há
espaço para dúvida quanto à importância do reconhecimento para a autoestima,
para a autoconfiança, para a autorrealização e para a felicidade”, arguiu
Ricardo Lewandowski, nobilitando a autoafirmação.
Luiz Fux
destacou a “importância de adequar a identidade de gênero à busca pela
felicidade”. A felicidade, esse desiderato humano ao qual devemos o cuidado de
oferecer o menos que pudermos de empecilhos.
“O
julgamento é um divisor de águas a ser celebrado. Até sua ocorrência, víamos
uma peregrinação burocrática de pessoas que desejam ver reconhecidos sua
identidade de gênero e registro cível de sexo e nome.
poderão exigir
do Estado, sem preconceito ou violência institucional, o reconhecimento pleno
da sua busca à felicidade”, resume Carlos Paz, defensor público-geral da União
(Letícia Casado, FSP, 02mar18).
O rol de
estorvos oponíveis à autodeterminação de gênero – licença judicial, atestado
médico e psicológico, intervenção cirúrgica –, essa ambulação indigna foi-se; o
indivíduo está livre para dizer-se como se sente.
Na praça, o corpo decidido por
ser mulher. Noticiar-lhe o estado de legalidade? Bobagem nossa: o corpo já se
autorizara. Tudo nele era feminino, seus desejos antecipados ao Direito
constituíram a decisão judicial.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
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