Uma nova lei, que entrou em
vigor no final do ano passado, busca ampliar a segurança jurídica no que se
refere à utilização do prontuário eletrônico no setor de saúde no Brasil.
Até a publicação da Lei Federal
nº 13.787, de 27 de dezembro de 2018, o arquivamento de prontuário estava
regulamentado por resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do
Ministério da Saúde, além de algumas leis que disciplinam o tema. A lei traz como
inovação a possibilidade de digitalizar e descartar os prontuários, que muitas
vezes são perdidos, extraviados ou mesmo deteriorados pelo tempo em razão do
armazenamento inadequado.
Importante destacar que, no
âmbito federal, já existe regulamentação para o arquivamento de documentos em
meios eletromagnéticos, a Lei 12.682/2012. Porém, não se trata nesta lei
especificamente de documentos da área de saúde e não existe qualquer menção
sobre o tempo de armazenamento dos documentos arquivados digitalmente. Consta,
porém, da mesma forma que na nova lei, a obrigatoriedade de se manter a
integridade, a autenticidade e a confidencialidade do documento digital, com o
emprego de certificado digital emitido no âmbito da Infraestrutura de Chaves
Públicas Brasileira - ICP - Brasil.
Se, por um lado, a recente lei
traz como novidade a possibilidade de se descartarem os prontuários
digitalizados, também é fato que o texto repete, em partes, dispositivos já
presentes em uma lei anterior, com mais de 50 anos - Lei n.º 5.433/1968 que
regula a microfilmagem de documentos oficiais.
Outra regulamentação, que
apresenta previsões na nova lei, é a Resolução CFM 1.821/2007, que
apresenta normas técnicas concernentes à digitalização e uso dos sistemas
informatizados para a guarda e manuseio dos documentos dos prontuários dos
pacientes, autorizando a eliminação do papel e a troca de informação
identificada em saúde. No texto, há previsão do Manual de Certificação para
Sistemas de Registro Eletrônico em Saúde pelo qual somente poderia ser
dispensado o prontuário físico quando o prontuário eletrônico apresentasse o
Nível de Garantia de Segurança 2 de Certificação Digital. Tal certificação era,
até o ano passado, responsabilidade do CFM, em parceria com o SBIS – parceria
essa não mais vigente, conforme se verifica pela recente
Resolução CFM nº
2.218, de 2018, mas que possivelmente será renovada.
Vale destacar que muitos
médicos sequer tinham conhecimento se o sistema por ele contratado apresenta a
referida certificação e, por desconhecimento da norma, a recomendação de guarda
do prontuário físico (quando ausente o NGS2) é negligenciada.
Juridicamente,
portanto, o sistema eletrônico de guarda de informações sem a garantia de
alguns requisitos como a integridade de informações, a garantia do sigilo, a
inviolabilidade, pode ser questionado. Evidente que uma perícia técnica poderá
ser realizada na eventualidade de suspeita de adulteração de dados do paciente.
Mas fica a questão: e a garantia de sigilo dessas informações, como saber se
fora preservada sem o uso de um sistema certificado?
A se considerar o texto da nova
lei, não se exigiria o nível de certificação indicado na resolução do CFM,
para a dispensa do prontuário físico bastando que o processo de digitalização
utilize certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil.
Outra
realidade observada pela nova lei: a dispensa de documentos já existentes, após
a digitalização fiel, observando o ICP-Brasil e a orientação para criação de
novos documentos, uma vez que estes poderão se realizar em sistema eletrônico
sem o backup físico, antes exigido pelo Manual de Certificação Digital do CFM,
quando utilizado sistema eletrônico nível 1 (NGS1).
Sem dúvida, a alteração quanto
à possibilidade de dispensa de arquivo físico permitirá que muitos estabelecimentos
até utilizem melhor certos espaços unicamente destinados ao arquivamento de
prontuários, uma vez que, pela resolução do CFM, a guarda do prontuário físico
também se fazia necessária.
Quanto
à documentação física já existente, a recomendação era a de se
guardassem os documentos do paciente por no mínimo 20 anos. A partir da
vigência da nova lei, os documentos físicos armazenados poderão ser
substituídos pelos digitalizados, guardados por 20 anos e destruídos após esse
prazo ou entregues ao paciente.
Na
Resolução 1821 do CFM, está indicada a guarda permanente para prontuários dos
pacientes arquivados eletronicamente em meio óptico, microfilmado ou
digitalizado.
O
Ministério da Saúde tem criado diretrizes para tornar efetiva a implantação do
prontuário eletrônico a fim de que se possa, eletronicamente, realizar o
registro das ações de saúde e compartilhar as informações de saúde do paciente
do SUS. Além do Decreto nº 8.789, de 29 de junho de 2016, há Portarias criadas
com o objetivo de promover a interoperabilidade das informações no sistema.
Ocorre
que, para que se possa informatizar o sistema de dados, deverá ser criada uma
infraestrutura em todos os locais de atendimento do país. Há lugares em que
sequer há computadores disponíveis, tampouco internet. A intenção é positiva,
entretanto em um país com dimensão continental e verbas sempre faltando, a
prioridade deveria estar na integração de dados, uma vez que dados
extraídos do sítio eletrônico do Ministério da Saúde apresentam um estudo do Banco
Mundial estimando economia na Saúde de R$ 22 bilhões por ano.
Havia
uma previsão, ainda não cumprida, de que até dezembro de 2018 46 mil unidades
básicas de saúde estivessem informatizadas. No final de 2017, o antigo governo
anunciou um projeto que previa um investimento inicial do Ministério da Saúde
de R$ 1,5 bilhão por ano chegando a R$ 3,4 bilhões por ano em 2019. A previsão
seria de que fossem fornecidos até 311 mil computadores, 293 mil tablets, 138
mil impressoras e 42 mil multifuncionais.
De outro lado, a recente
lei precisa ser regulamentada em vários aspectos. Um deles está na
obrigatoriedade de que a Comissão de Revisão de Prontuário analise os
prontuários antes do descarte definitivo. Quais as regras de descarte a
serem observadas? E quem fiscalizará o trabalho das Comissões?
Não há notícia de que se
tenha feito um levantamento junto às Comissões de Revisão de Prontuário
existentes, mas seria interessante saber como tem sido na prática a análise de
documentos digitalizados nas instituições de saúde. Se houvesse
dados reais sobre o trabalho dessas comissões, seria possível afirmar
se tal medida está servindo a seu propósito de garantir a integridade dos
documentos digitalizados. Nesse momento, a efetividade dessa análise é uma
incógnita.
Já estão sendo dados os
primeiros passos regulatórios para que o prontuário eletrônico seja uma
realidade no sistema público e no privado. Agora, precisamos ver se, na
prática, a nova lei será cumprida e se os profissionais de saúde vão se adequar
de forma ética às inovações necessárias para a evolução do setor no país.
Sandra Franco -
consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde,
presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde, ex-presidente da Comissão de
Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB de São José dos
Campos (SP), membro do Comitê de Ética da UNESP para pesquisa em seres humanos
e Doutoranda em Saúde Pública – drasandra@sfranconsultoria.com.br
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