Michael Sandel, professor do curso de Direito em
Harvard, discute a importância de o Estado criar obrigações aos cidadãos, de
forma a fortalecer os laços de pertencimento com o espaço público, o ambiente
no qual todos – ricos e pobres, brancos e negros, nacionais e imigrantes,
jovens e velhos, homens e mulheres, aptos ou portadores de deficiências físicas
ou mentais – convivem, mais ou menos, intensa ou sazonalmente. Sandel questiona
duas características da legislação americana que, segundo ele, enfraquecem esse
laço de pertencimento: o voto facultativo e o serviço militar não obrigatório.
Para Sandel, recuperando a ideia aristotélica de “bem", a finalidade
da ação virtuosa não é a maior satisfação ou simplesmente fazer o que “é
certo”. É agir para o bem comum, o bem da polis, da comunidade compartilhada.
Isto é, a pátria. Daí o jurista e professor norte-americano
criticar o esvaziamento das ações nas quais todos os cidadãos conviveriam e partilhariam
um propósito comum: a proteção de seus locais de pertencimento.
No Brasil, a discussão em torno das chamadas
“obrigações cívicas” ainda são fortemente marcadas pela presença recente do
regime militar. Aliás, essa vontade de apagar o passado da presença dos
militares no poder levou, logo após o início da redemocratização, ao fim das
disciplinas de Educação Moral e Cívica, Organização Social e Política do Brasil
e Estudos dos Problemas Brasileiros, além de esvaziar e depois praticamente
extinguir o Projeto Rondon, que levava jovens dos grandes centros urbanos para
conhecer e conviver com a realidade de outras regiões do país. Os currículos
escolares foram revisados e os chamados “heróis da pátria” remanejados para o
limbo, quando não “desconstruídos” pela nova linguagem no poder. Da mesma
forma, as manifestações em relação aos símbolos da pátria – bandeira e hino – e
suas festividades também caíram em desuso.
Certo ou errado, o resultado é que as novas
gerações convivem hoje com um vácuo de referências simbólicas, na medida em que
nada ocupou o lugar dos programas e atividades referentes ao congraçamento do
espaço público. Recentemente, uma amiga que passou a morar em Londres e
matriculou a filha na escola local, contou-me que em uma das primeiras atividades,
a professora falou sobre os heróis ingleses e perguntou aos alunos migrantes
quais os heróis de seus países. A menina de 13 anos ficou nervosa, porque não
sabia o que responder. “Tiradentes” foi o que lhe ocorreu. Mas sem saber
exatamente explicar por que ele foi um “herói”.
Discutir essa temática não significa, em absoluto,
buscar uma volta ao passado, uma lamentação nostálgica a um período de
repressão e autoritarismo que não fez nenhum bem aos cidadãos brasileiros.
Significa buscar recuperar a discussão sobre quem somos como brasileiros, qual
o passado comum que podemos compartilhar e chamar de “nosso”, quais as
referências que nos permitem trilhar uma narrativa de pátria, de identidade, de
compromisso, de defesa de valores que constituem o que chamamos de “direitos de
todos”. Essa tarefa está em aberto, para além dos heróis fabricados ou
imaginados. Quem sabe a filha de minha amiga pudesse dizer, diante da pergunta
da professora, a lista de educadores, poetas, pesquisadores, líderes
comunitários, empreendedores, democratas, trabalhadores que construíram esse
país para além de seus próprios interesses, para além de seus próprios
privilégios. Eu teria, na ponta da língua, dois nomes, meus heróis: Zilda Arns
e Herbert de Souza.
Daniel Medeiros - Doutor
em Educação Histórica pela UFPR e professor do Curso Positivo, em Curitiba.
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